Meu
avô, nesses dias, me levava rio abaixo, enfilado em seu pequeno
concho. Ele remava, devagaroso, somente raspando o remo na
correnteza. O barquito cabecinhava, onda cá, onda lá, parecendo ir
mais sozinho que um tronco desabandonado.
— Mas
vocês vão aonde?
Era
a aflição de minha mãe. O velho sorria. Os dentes, nele, eram um
artigo indefinido. Vovô era dos que se calam por saber e conversam
mesmo sem nada falarem.
— Voltamos
antes de um agorinha, respondia.
Nem
eu sabia o que ele perseguia. Peixe não era. Porque a rede ficava
amolecendo o assento. Garantido era que, chegada a incerta hora, o
dia já crepusculando, ele me segurava a mão e me puxava para a
margem. A maneira como me apertava era a de um cego desbengalado. No
entanto, era ele quem me conduzia, um passo à frente de mim. Eu me
admirava da sua magreza direita, todo ele musculíneo. O avô era um
homem em flagrante infância, sempre arrebatado pela novidade de
viver.
Entrávamos
no barquinho, nossos pés pareciam bater na barriga de um tambor. A
canoa solavanqueava, ensonada. Antes de partir, o velho se debruçava
sobre um dos lados e recolhia uma aguinha com sua mão em concha. E
eu lhe imitava.
— Sempre
em favor da água, nunca esqueça!
Era
sua advertência. Tirar água no sentido contrário ao da corrente
pode trazer desgraça. Não se pode contrariar os espíritos que
fluem.
Depois
viajávamos até ao grande lago onde nosso pequeno rio desaguava.
Aquele era o lugar das interditas criaturas. Tudo o que ali se
exibia, afinal, se inventava de existir. Pois, naquele lugar se
perdia a fronteira entre água e terra. Naquelas inquietas calmarias,
sobre as águas nenufarfalhudas, nós éramos os únicos que
preponderávamos. Nosso barquito ficava ali, quieto, sonecando no
suave embalo. O avô, calado, espiava as longínquas margens. Tudo em
volta mergulhava em cacimbações, sombras feitas da própria luz,
fosse ali a manhã eternamente ensonada. Ficávamos assim, como em
reza, tão quietos que parecíamos perfeitos.
De
repente, meu avô se erguia no concho. Com o balanço quase o barco
nos deitava fora. O velho, excitado, acenava. Tirava seu pano
vermelho e agitava-o com decisão. A quem acenava ele? Talvez era a
ninguém. Nunca, nem por instante, vislumbrei por ali alma deste ou
de outro mundo. Mas o avô acenava seu pano.
— Você
não vê lá, na margem? Por trás do cacimbo?
Eu
não via. Mas ele insistia, desabotoando os nervos.
— Não
é lá. É láááá. Não vê o pano branco, a dançar-se?
Para
mim havia era a completa neblina e os receáveis aléns, onde o
horizonte se perde. Meu velho, depois, perdia a miragem e se
recolhia, encolhido no seu silêncio. E regressávamos, viajando sem
companhia de palavra.
Em
casa, minha mãe nos recebia com azedura. E muito me proibia, nos
próximos futuros. Não queria que fôssemos para o lago, temia as
ameaças que ali moravam. Primeiro, se zangava com o avô,
desconfiando dos seus não propósitos. Mas depois, já amolecida
pela nossa chegada, ela ensaiava a brincadeira:
— Ao
menos vissem o namwetxo moha! Ainda ganhávamos vantagem de uma boa
sorte...
O
namwetxo moha era o fantasma que surgia à noite, feito só de
metades: um olho, uma perna, um braço. Nós éramos miúdos e
saíamos, aventurosos, procurando o moha. Mas nunca nos foi visto tal
monstro. Meu avô nos apoucava. Dizia ele que, ainda em juventude, se
tinha entrevisto com o tal semifulano. Invenção dele, avisava minha
mãe. Mas a nós, miudagens, nem nos passava desejo de duvidar.
Certa
vez, no lago proibido, eu e vovô aguardávamos o habitual surgimento
dos ditos panos. Estávamos na margem onde os verdes se encaniçam,
aflautinados. Dizem: o primeiro homem nasceu de uma dessas canas. O
primeiro homem? Para mim não podia haver homem mais antigo que meu
avô. Acontece que, dessa vez, me apeteceu espreitar os pântanos.
Queria subir à margem, colocar pé em terra não firme.
— Nunca!
Nunca faça isso!
O
ar dele era de maiores gravidades. Eu jamais assistira a um semblante
tão bravio em meu velho. Desculpei-me: que estava descendo do barco
mas era só um pedacito de tempo. Mas ele ripostou:
— Neste
lugar, não há pedacitos. Todo o tempo, a partir daqui, são
eternidades.
Eu
tinha um pé meio-fora do barco, procurando o fundo lodoso da margem.
Decidi me equilibrar, busquei chão para assentar o pé. Sucedeu-me
então que não encontrei nenhum fundo, minha perna descia engolida
pelo abismo. O velho acorreu-me e me puxou. Mas a força que me
sugava era maior que o nosso esforço. Com a agitação, o barco
virou e fomos dar com as costas posteriores na água. Ficamos assim,
lutando dentro do lago, agarrados às abas da canoa. De repente, meu
avô retirou o seu pano do barco e começou a agitá-lo sobre a
cabeça.
— Cumprimenta
também, você!
Olhei
a margem e não vi ninguém. Mas obedeci ao avô, acenando sem
convicções. Então, deu-se o espantável: subitamente, deixamos de
ser puxados para o fundo. O remoinho que nos abismava se desfez em
imediata calmaria. Voltamos ao barco e respiramos os alívios gerais.
Em silêncio, dividimos o trabalho do regresso. Ao amarrar o barco, o
velho me pediu:
— Não
conte nada o que se passou. Nem a ninguém, ouviu?
Nessa
noite, ele me explicou suas escondidas razões. Meus ouvidos se
arregalavam para lhe decifrar a voz rouca. Nem tudo entendi. No mais
ou menos, ele falou assim: nós temos olhos que se abrem para dentro,
esses que usamos para ver os sonhos. O que acontece, meu filho, é
que quase todos estão cegos, deixaram de ver esses outros que nos
visitam. Os outros? Sim, esses que nos acenam da outra margem. E
assim lhes causamos uma total tristeza. Eu levo-lhe lá nos pântanos
para que você aprenda a ver. Não posso ser o último a ser visitado
pelos panos.
— Me
entende?
Menti
que sim. Na tarde seguinte, o avô me levou uma vez mais ao lago.
Chegados à beira do poente ele ficou a espreitar. Mas o tempo passou
em desabitual demora. O avô se inquietava, erguido na proa do barco,
palma da mão apurando as vistas. Do outro lado, havia menos que
ninguém. Desta vez, também o avô não via mais que a enevoada
solidão dos pântanos. De súbito, ele interrompeu o nada:
— Fique
aqui!
E
saltou para a margem, me roubando o peito no susto. O avô pisava os
interditos territórios? Sim, frente ao meu espanto, ele seguia em
passo sabido. A canoa ficou balançando, em desequilibrismo com meu
peso ímpar. Presenciei o velho a alonjar-se com a discrição de uma
nuvem. Até que, entre a neblina, ele se declinou em sonho, na margem
da miragem. Fiquei ali, com muito espanto, tremendo de um frio
arrepioso. Me recordo de ver uma garça de enorme brancura atravessar
o céu. Parecia uma seta trespassando os flancos da tarde, fazendo
sangrar todo o firmamento. Foi então que deparei na margem, do outro
lado do mundo, o pano branco. Pela primeira vez, eu coincidia com meu
avô na visão do pano. Enquanto ainda me duvidava foi surgindo,
mesmo ao lado da aparição, o aceno do pano vermelho do meu avô.
Fiquei indeciso, barafundido. Então, lentamente, tirei a camisa e
agitei-a nos ares. E vi: o vermelho do pano dele se branqueando, em
desmaio de cor. Meus olhos se neblinaram até que se poentaram as
visões.
Enquanto
remava um demorado regresso, me vinham à lembrança as velhas
palavras de meu velho avô: a água e o tempo são irmãos gêmeos,
nascidos do mesmo ventre. E eu acabava de descobrir em mim um rio que
não haveria nunca de morrer. A esse rio volto agora a conduzir meu
filho, lhe ensinando a vislumbrar os brancos panos da outra margem.
Mia
Couto, in Estórias abensonhadas
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