segunda-feira, 22 de abril de 2019

Especiarias

No fim, tudo se deve à comida insossa. Quando os mongóis e os turcos interromperam o suprimento por terra dos condimentos do Oriente, a era dos descobrimentos começou. A Europa descobriu que não podia viver sem tempero e lançou-se ao mar e à conquista de rotas alternativas para o cominho e, por acidente, outros mundos.
A América é um produto do paladar europeu. Toda a grande aventura imperial foi aromática, tangida pela pimenta e o gengibre, a hortelã e a noz-moscada. Homens rudes lançavam-se contra o desconhecido e a morte pelo rosmaninho. Navios inteiros eram tragados pelo mar e deixavam, na superfície, irônicas sopas de ervas. Até a poluição era inocente: se se rompesse um porão de navio, as praias se cobriam de grãos de mostarda, as gaivotas se intoxicavam com favos de baunilha. Desastre ecológico era quando os peixes engoliam alho, cebola e alcaparras e já vinham à tona prontos para a panela.
Outras fomes eram servidas, claro. A de ouro, a de prata, a de espaço. E a de sexo, pois as mulheres européias também eram sem sal. Descobriu-se que o comércio de escravos era mais rentável do que o comércio de especiarias e não houve nenhum escrúpulo, ou reticência poética, em fazer a adaptação. Mas os novos mundos continuaram a ser governados pelo paladar da Europa. Não dá para calcular quanta gente morreu nos navios negreiros ou no trabalho escravo para que a classe operária inglesa tivesse açúcar no seu chá todos os dias, por exemplo. E é por falta de condimentos parecidos onde eles vivem que turistas europeus continuam desembarcando no Nordeste do Brasil para comer adolescentes.
A especiaria de hoje é a droga e não deixa de ser apropriado que cocaína pareça açúcar. O apetite servido é pelo delírio, não mais pela noz-moscada, e a carga viaja escondida. Quem transporta drogas é chamado de “mula” e há no apelido uma vaga evocação das caravanas do Oriente que enfrentavam bárbaros e ursos — em vez de fiscais na alfândega — só para dar uma sensação à Europa.
Luís Fernando Veríssimo, in A mesa voadora

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