quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Uma misteriosa doença de época

Nem fazia tanto tempo que tinham sido rapazes — pensou Ulrich quando voltou a ficar sozinho —, que tinham as grandes ideias, não apenas antes de todo mundo, mas também simultaneamente, pois bastava um abrir a boca para dizer algo novo, e o outro acabava de fazer a mesma extraordinária descoberta. São singulares, essas amizades da juventude, são como um ovo que sente na gema seu magnífico futuro de pássaro, mas mostra ao mundo apenas aquela linha de ovo, inexpressiva, que não se distingue de nenhuma outra. Ele viu diante de si nitidamente o quarto de rapazes e estudantes, onde os dois se encontravam quando ele voltava por algumas semanas depois de suas primeiras incursões no mundo. A escrivaninha de Walter, coberta de desenhos, anotações e folhas pautadas, irradiando antecipadamente o brilho futuro de um homem famoso, e diante dela a estreita prateleira de livros, à frente da qual Walter se postava às vezes, cheio de fervor, como São Sebastião amarrado ao pilar, a luz da lâmpada sobre a bela cabeleira que Ulrich sempre admirara secretamente. Nietzsche, Altenberg, Dostoievski ou quem quer que estivessem lendo naquele momento, tinham de se conformar e ficar jogados no chão ou sobre a cama, quando não eram mais necessários ou quando a torrente dos diálogos não tolerava a mesquinha interrupção de os recolocar em seus lugares. A arrogância da juventude, para quem os grandes espíritos servem apenas para serem usados a bel-prazer, parecia singularmente bela naquele momento. Ele procurou recordar as conversas. Eram como um sonho quando, ao acordar, ainda pegamos os últimos pensamentos do sono. Pensou então, com leve espanto: “Se naquele tempo fazíamos afirmações, tinham outro objetivo além de serem corretas: simplesmente o de nos afirmarmos!”
O impulso de ser luz era na juventude mais forte do que o de ver as coisas na luz; a lembrança da juventude, como um voo sobre raios, lhe pareceu agora uma dolorosa perda.
Para Ulrich era como se no começo da idade viril tivesse entrado numa generalizada calmaria, que apesar de alguns redemoinhos eventuais, que rapidamente se amainavam, pulsava cada vez mais fraca e perturbada. Não se podia dizer direito de que constava aquela transformação. Haveria menos homens importantes, de repente? De modo algum! Além disso, nem se trata deles; o ápice de uma época não depende deles. Por exemplo, nem a falta de espiritualidade dos homens dos anos sessenta e oitenta conseguiu abafar o surgimento de um Nietzsche e um Hebbel, nem um deles conseguiu evitar a falta de espiritualidade de seus contemporâneos. Seria a vida, em geral, que marcava passo? Não: tornara-se mais poderosa ainda! Haveria mais paradoxos paralisantes do que antigamente? Era difícil! Não se teriam cometido enganos, antigamente? Muitos! Cá entre nós, naquele tempo as pessoas tomavam partido dos débeis e ignoravam os fortes, tolos chegavam a assumir o papel de líderes, e grandes talentos o papel de excêntricos. O alemão, imperturbado por aquela dor de parto que chamava de excessos decadentes e mórbidos, continuava lendo suas revistas para a família, e visitando, mais que as manifestações de arte independentes, os palácios de vidro e os salões de artistas conhecidos; a política, então, não dava qualquer atenção aos pontos de vista dos novos homens e a suas revistas, e as instituições oficiais defendiam-se das novidades como de uma doença.
Não se poderia dizer que desde então tudo melhorara? Pessoas antigamente dirigindo pequenas seitas eram hoje velhas celebridades; editores e marchands enriqueceram; coisas novas se inauguram a toda hora; todo mundo visita igualmente os palácios de vidro e as exposições dos independentes e suas secessões; nas revistas familiares aparecem mulheres de cabelo curto; estadistas gostam de se dizer versados em cultura e arte; jornais fazem literatura. Então, o que foi que se perdeu?
Algo imponderável. Um presságio. Uma ilusão. Como quando um ímã larga a limalha e esta se mistura toda outra vez. Como quando fios de novelos se desmancham. Quando um cortejo se dispersa. Quando uma orquestra começa a desafinar. Não se poderiam provar detalhes que não tenham existido antigamente, mas todas as proporções tinham se deslocado um pouco. Ideias que antes possuíam magro valor engordavam. Pessoas antigamente ignoradas tornavam-se famosas. O grosseiro se suavizava, o separado se reunia, independentes faziam concessões, o gosto já formado sofria de inseguranças. As fronteiras nítidas se borravam, e uma nova capacidade indescritível de se agrupar produziu novas pessoas e novas concepções. Não eram ruins, certamente não; havia apenas um pouco de ruindade demais misturada ao que era bom, engano demais na verdade, flexibilidade demais nos significados. Parecia haver realmente uma porcentagem específica daquela mistura, à qual o mundo dava preferência; uma pequena, apenas suficiente dose de sucedâneo fazia o gênio ser genial e o talento ser uma esperança, assim como um pouco de café de figos ou chicória, na opinião de alguns, confere ao café a sua verdadeira qualidade de café; e de repente todos os lugares privilegiados e importantes do espírito estavam ocupados por esse tipo de gente, e todas as decisões eram tomadas em seu sentido. Não se pode responsabilizar nada por isso. Nem se pode dizer como tudo aconteceu. Nem se pode lutar contra determinadas pessoas ou ideias ou determinados fenômenos. Não falta talento nem boa vontade, nem mesmo faltam caracteres. Falta ao mesmo tempo tudo e nada; é como se o ar, ou o sangue, tivessem mudado; uma doença misteriosa devorou a pequena genialidade dos velhos tempos, mas tudo cintila de novidade, e por fim não se sabe mais se o mundo realmente ficou pior, ou se apenas nós ficamos mais velhos. Então, definitivamente chegou uma nova era.
Portanto, os tempos mudaram como um dia que começa azul e radiante e se cobre suavemente de nuvens, e nem tiveram a gentileza de esperar por Ulrich. Este pagava na mesma moeda e considerava simples burrice a causa daquela mudança misteriosa que deixava doente sua época, devorando a genialidade. E isso não no sentido pejorativo. Pois se, vista de dentro, a burrice não se parecesse com talento, a ponto de se confundir com ele, e se, vista de fora, não pudesse parecer progresso, genialidade, esperança, melhoria, ninguém quereria ser burro, e a burrice não existiria. Ou, ao menos, seria fácil de combater. Mas infelizmente há nela algo incrivelmente natural e sedutor. Se, por exemplo, se julga uma reprodução mais artística do que um quadro pintado a mão, existe nisso uma verdade mais fácil de provar do que provar que Van Gogh foi um grande artista. Assim, é muito fácil e compensador ser um dramaturgo mais forte do que Shakespeare e um narrador mais equilibrado do que Goethe: e um verdadeiro lugar- comum é sempre mais humano do que uma nova descoberta. Não há nenhum pensamento importante que a burrice não saiba usar, ela é móvel para todos os lados e pode vestir todos os trajes da verdade. A verdade, porém, tem apenas um vestido de cada vez, e um só caminho, e está sempre em desvantagem.
Algum tempo depois, Ulrich teve uma idéia singular em relação a isso. Imaginou que o grande filósofo da Igreja Tomaz de Aquino, morto em 1274 depois de ter ordenado com indizível esforço os pensamentos de seu tempo, tivesse se aprofundado ainda mais, e acabasse nesse momento de concluir sua obra; permanecendo jovem por uma graça especial, ele apareceria saindo da porta em arco de sua casa, com muitos in-fólios debaixo do braço, e um bonde elétrico passaria disparando diante do seu nariz. O espanto e incompreensão do doctor universalis, como chamavam o famoso Tomaz no passado, divertiu Ulrich. Um motociclista veio pela rua vazia, braços e pernas em O, e passou trovejando. Seu rosto tinha a gravidade de uma criança a berrar por algo imensamente importante. Ulrich lembrou-se do retrato de uma famosa tenista, que vira há poucos dias numa revista; estava na ponta dos pés, expusera a perna até onde ficava a liga, a outra perna voava em direção da cabeça, enquanto ela brandia a raquete bem alto para pegar uma bola; e enquanto isso, tinha a cara de uma governanta inglesa. Na mesma revista mostrava-se uma nadadora, deixando-se massagear depois da competição; a seus pés e junto de sua cabeça havia duas mulheres sérias em traje de passeio, enquanto ela jazia nua na cama, joelhos puxados em posição de entrega, e o massagista ao lado pousava as mãos sobre ela, usava avental de médico e erguia o olhar para o fotógrafo como se aquela carne de mulher estivesse esfolada e pendurada num gancho. Naquele tempo começavam a se ver coisas desse gênero, e é preciso reconhecer que existem, assim como se reconhecem os altos edifícios e a eletricidade. “A gente não pode se zangar com seu tempo sem sair prejudicado”, pensou Ulrich. Estava sempre disposto a amar todas essas manifestações de vida. O que nunca conseguia era amá-las sem reservas, como exigia a sensação de bem- estar social; há muito pairava sobre tudo o que ele fazia e vivia um sopro de repulsa, uma sombra de impotência e solidão, uma náusea universal, para a qual não conseguia encontrar nenhuma inclinação compensadora. Por vezes, sentia-se como se tivesse nascido com um talento para o qual não havia objetivo no presente.
Robert Musil, in O Homem sem qualidades

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