quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

O adivinhador das mortes

No bairrinho de Muitetecate havia um poderoso espiriteiro que adivinhava, com acerto de álgebra, a data das individuais mortes. Não usava os convencionais métodos: pedrinhas, conchas e ossinhos. Não. Ele tinha duas pequenas cruzes de marfim que encostava sobre os olhos dos consultados. O adivinho cerrava os seus próprios olhos: se concentrava, todo dentro das pálpebras, até abraçar com seu escuro o escuro do outro. Nesse tocar de penumbras se escrevia o exato da data dos falecimentos.
Pois, em Muitetecate, todos encorajavam Adabo Salanje a consultar os serviços do adivinheiro.
Vai e sabes o fatal dia.
Adabo recusava. Saber seu derradeiro prazo? Para fazer o quê? Certas felicidades só chegam com o não saber. Aprendemos a viver não é para terminarmos. A luz não aceita seu futuro: ser poeira. Saboreamos o cristal do riso, a polpa sumaruda do amor, a doce sombra da amizade, trincamos a eternidade em breves dentadas não é para depois sermos nada, nenhum, ninguém.
E Adabo Salanje se dava bem era nessa ignorância, ilusão de não ter contrato com o tempo. Até que uma noite despertou em tremuras e transpiros. Salanje acordou em pleno escuro, coração a sair-lhe pelos poros. Sonhara que estava na residência dos mortos e lhe perguntavam:
Você, Salanje, ainda está morto?
E lhe empurravam: ele que se servisse de consulta com os aléns para saber a data da sua revivência. Afinal, quanto mais tarde ele soubesse mais cedo ele transitaria de estado, no inverso da lógica deste outro lado do mundo.
No dia seguinte, saído à rua, Salanje saboreou a claridade como se fosse a primeira vez. Será verdade, estou vindo do além? Afinal, o sonho se cumprira? Fosse ou não, Adabo Salanje se deslumbrava com o azul, trinantes cantos enfeitando os pássaros. Naquele mesmo momento, ele se decidiu e se encaminhou para o adivinhista. Pensava o ensinamento do sonho: se soubesse a prévia data da póstuma morte ele acabaria ludibriando o calendário. A surpresa é a vantagem da morte. Roube-se-lhe esse proveito e seremos nós, mortais, eternos vencedores e viventes.
E ele lá foi. O adivinho recebeu-lhe torcendo troça nos lábios. Ordenou que se sentasse na penumbra. O sábio espreitava o tempo através das cruzes colocadas sobre os cerrados olhos. Requeria-se o total silêncio. De repente, ele confessou preocupação, em estalo da língua:
Desconsigo. Sua cabeça está muito barulhosa. Aquiete lá o pensamento!
Adabo se admirou. Ele estava em total imobilidade. Que culpa tinha? O adivinhador voltou a concentrar-se em seus serviços. Ficou afastando e aproximando as cruzes, aparentando difícil focagem.
Sabe, o senhor? Há em si uma situação...
Situação? — Nem sei como vou lhe dizer.
Salanje engoliu goelas. Não digam a sua morte estava perto, no calendário da semana? Contar-se-iam pelos dias os tempos que lhe restavam?
Vou morrer daqui a nada?
Não. Não vai morrer.
Não vou morrer? Como não vou?
Esse o problema.
Se me explique, homem!
É que você, Adabo Salanje, você já morreu.
O cliente se abismalhou. Passadas umas moscas, ele rebentou em gargalhada. Disparate! De tanto rir, teve que levantar para aliviar as costelas. Quando gargalhamos nos aumenta a quantidade de costelas. Daí o perigo de rirmos alto e despregado. Adabo saiu do consultório, respirou uma porção de ar e voltou para dentro. Já vinha sério:
Então me faz favor explicar: que dia eu, afinal, morri?
Ontem à noite. O senhor, em verdade, é um recém-falecido.
Adabo se embrumou. Fora o sonho? Pode a morte suceder em terras enevoadas do sonho? Nunca ouvira. Mentira, devia ser mentira do adivinho. O fulano canganhiçava. A zanga de Adabo não sabia se havia de rir. Acabou por levedar a maka:
Está bom. Então se estou morto, como você adianta, não posso pagar consulta. Vou embora assim mesmo.
E desandou. Nem mais quis saber. Qualquer coisa, porém, mudara em sua íntima existência. Porque ele passara a ter facilidades com a bondade, paciência com os meninos, gentileza com os velhos. As mulheres lhe surgiam com nova graça, pareciam feitas de nenhuma matéria. Já não lhe subiam aqueles calores desenfreáticos quando deparava com as belezas delas. E sobretudo, havia uma maior mudança: nunca mais ele teve acesso ao sonho. Ele que era um assíduo sonhador nunca mais voltaria a ter devaneio.
Na seguinte manhã, a mulher lhe desperta com ternura, beijo na fronte. Nunca antes havia sido dedicado tais ternuras. E com a meiguice de um suspiro:
Tinha tantas saudades suas, Adabo!
Ressurge-lhe, enormecida, a dúvida. Estaria mesmo morto, conforme o vaticínio do outro? Seu falecimento estaria vigente e em vigor, sem que ele tivesse sido devidamente notificado? A dúvida lhe escavava fundo.
Não mais esperou. Voltou ao consultório do futurista. Chegado lá, estranhou o vazio de gente. Só uma velha galinha se passeava no recinto. Bateu licenças na porta mas ninguém respondeu. Foi entrando na salinha escura. Quando seus olhos se conformavam com as sombras ele notou, abandonadas, as duas cruzinhas de marfim. Se baixou para as apanhar e, assim, posto de cócoras, encostou os marfins sobre as pálpebras. E esperou a chegada de um sinal. Uma voz lhe deu susto:
O senhor quem é?
Sou Adabo, venho ver o adivinho.
Não pode.
Eu pago, adiantado até. Aliás, o adivinho me deve...
Não pode. O mestre já deu falecimento.
Morreu? Quando?
Morrera no dia anterior. Então, o mestre, como o outro lhe chamara, não fora capaz de adivinhar sua própria morte? Adabo fazia gozo. Mas o outro lhe respondeu que os pessoais assuntos escapam aos próprios feiticeiros. Salanje saía, em gravidade: agora, morto o adivinho, como poderia esclarecer o autêntico de sua morte?
Posso levar estas cruzes?
Leva, fica para acerto de seu dinheiro.
E voltou ao caminho, mãos nos bolsos, confirmando os marfins. O poente já se afundava, o naufrágio da luz se espalhando pelo bairro. Foi no curvar da esquina, o susto de um ilegível vulto. Se arrepiou quando reconheceu a voz do adivinhador:
Venho buscar meus marfins.
Ele desembolsou os inutensílios e os estendeu em concha para as mãos do outro. Então, inesperadamente, sentiu as mãos presas, cativas do feiticeiro. Primeiro, resistiu. Depois, experimentando a convicção das outras mãos, foi esvanecendo. O adivinheiro adocicou a voz, em modos de convite:
Vem comigo.
E os dois pelo caminhinho não deixavam nenhuma pegada, fossem pisando não a areia mas o céu.
Mia Couto, in Estórias abensonhadas

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