No
bairrinho de Muitetecate havia um poderoso espiriteiro que
adivinhava, com acerto de álgebra, a data das individuais mortes.
Não usava os convencionais métodos: pedrinhas, conchas e ossinhos.
Não. Ele tinha duas pequenas cruzes de marfim que encostava sobre os
olhos dos consultados. O adivinho cerrava os seus próprios olhos: se
concentrava, todo dentro das pálpebras, até abraçar com seu escuro
o escuro do outro. Nesse tocar de penumbras se escrevia o exato da
data dos falecimentos.
Pois,
em Muitetecate, todos encorajavam Adabo Salanje a consultar os
serviços do adivinheiro.
— Vai
e sabes o fatal dia.
Adabo
recusava. Saber seu derradeiro prazo? Para fazer o quê? Certas
felicidades só chegam com o não saber. Aprendemos a viver não é
para terminarmos. A luz não aceita seu futuro: ser poeira.
Saboreamos o cristal do riso, a polpa sumaruda do amor, a doce sombra
da amizade, trincamos a eternidade em breves dentadas não é para
depois sermos nada, nenhum, ninguém.
E
Adabo Salanje se dava bem era nessa ignorância, ilusão de não ter
contrato com o tempo. Até que uma noite despertou em tremuras e
transpiros. Salanje acordou em pleno escuro, coração a sair-lhe
pelos poros. Sonhara que estava na residência dos mortos e lhe
perguntavam:
— Você,
Salanje, ainda está morto?
E
lhe empurravam: ele que se servisse de consulta com os aléns para
saber a data da sua revivência. Afinal, quanto mais tarde ele
soubesse mais cedo ele transitaria de estado, no inverso da lógica
deste outro lado do mundo.
No
dia seguinte, saído à rua, Salanje saboreou a claridade como se
fosse a primeira vez. Será verdade, estou vindo do além? Afinal, o
sonho se cumprira? Fosse ou não, Adabo Salanje se deslumbrava com o
azul, trinantes cantos enfeitando os pássaros. Naquele mesmo
momento, ele se decidiu e se encaminhou para o adivinhista. Pensava o
ensinamento do sonho: se soubesse a prévia data da póstuma morte
ele acabaria ludibriando o calendário. A surpresa é a vantagem da
morte. Roube-se-lhe esse proveito e seremos nós, mortais, eternos
vencedores e viventes.
E
ele lá foi. O adivinho recebeu-lhe torcendo troça nos lábios.
Ordenou que se sentasse na penumbra. O sábio espreitava o tempo
através das cruzes colocadas sobre os cerrados olhos. Requeria-se o
total silêncio. De repente, ele confessou preocupação, em estalo
da língua:
— Desconsigo.
Sua cabeça está muito barulhosa. Aquiete lá o pensamento!
Adabo
se admirou. Ele estava em total imobilidade. Que culpa tinha? O
adivinhador voltou a concentrar-se em seus serviços. Ficou afastando
e aproximando as cruzes, aparentando difícil focagem.
— Sabe,
o senhor? Há em si uma situação...
— Situação?
— Nem sei como vou lhe dizer.
Salanje
engoliu goelas. Não digam a sua morte estava perto, no calendário
da semana? Contar-se-iam pelos dias os tempos que lhe restavam?
— Vou
morrer daqui a nada?
— Não.
Não vai morrer.
— Não
vou morrer? Como não vou?
— Esse
o problema.
— Se
me explique, homem!
— É
que você, Adabo Salanje, você já morreu.
O
cliente se abismalhou. Passadas umas moscas, ele rebentou em
gargalhada. Disparate! De tanto rir, teve que levantar para aliviar
as costelas. Quando gargalhamos nos aumenta a quantidade de costelas.
Daí o perigo de rirmos alto e despregado. Adabo saiu do consultório,
respirou uma porção de ar e voltou para dentro. Já vinha sério:
— Então
me faz favor explicar: que dia eu, afinal, morri?
— Ontem
à noite. O senhor, em verdade, é um recém-falecido.
Adabo
se embrumou. Fora o sonho? Pode a morte suceder em terras enevoadas
do sonho? Nunca ouvira. Mentira, devia ser mentira do adivinho. O
fulano canganhiçava. A zanga de Adabo não sabia se havia de rir.
Acabou por levedar a maka:
— Está
bom. Então se estou morto, como você adianta, não posso pagar
consulta. Vou embora assim mesmo.
E
desandou. Nem mais quis saber. Qualquer coisa, porém, mudara em sua
íntima existência. Porque ele passara a ter facilidades com a
bondade, paciência com os meninos, gentileza com os velhos. As
mulheres lhe surgiam com nova graça, pareciam feitas de nenhuma
matéria. Já não lhe subiam aqueles calores desenfreáticos quando
deparava com as belezas delas. E sobretudo, havia uma maior mudança:
nunca mais ele teve acesso ao sonho. Ele que era um assíduo sonhador
nunca mais voltaria a ter devaneio.
Na
seguinte manhã, a mulher lhe desperta com ternura, beijo na fronte.
Nunca antes havia sido dedicado tais ternuras. E com a meiguice de um
suspiro:
— Tinha
tantas saudades suas, Adabo!
Ressurge-lhe,
enormecida, a dúvida. Estaria mesmo morto, conforme o vaticínio do
outro? Seu falecimento estaria vigente e em vigor, sem que ele
tivesse sido devidamente notificado? A dúvida lhe escavava fundo.
Não
mais esperou. Voltou ao consultório do futurista. Chegado lá,
estranhou o vazio de gente. Só uma velha galinha se passeava no
recinto. Bateu licenças na porta mas ninguém respondeu. Foi
entrando na salinha escura. Quando seus olhos se conformavam com as
sombras ele notou, abandonadas, as duas cruzinhas de marfim. Se
baixou para as apanhar e, assim, posto de cócoras, encostou os
marfins sobre as pálpebras. E esperou a chegada de um sinal. Uma voz
lhe deu susto:
— O
senhor quem é?
— Sou
Adabo, venho ver o adivinho.
— Não
pode.
— Eu
pago, adiantado até. Aliás, o adivinho me deve...
— Não
pode. O mestre já deu falecimento.
— Morreu?
Quando?
Morrera
no dia anterior. Então, o mestre, como o outro lhe chamara, não
fora capaz de adivinhar sua própria morte? Adabo fazia gozo. Mas o
outro lhe respondeu que os pessoais assuntos escapam aos próprios
feiticeiros. Salanje saía, em gravidade: agora, morto o adivinho,
como poderia esclarecer o autêntico de sua morte?
— Posso
levar estas cruzes?
— Leva,
fica para acerto de seu dinheiro.
E
voltou ao caminho, mãos nos bolsos, confirmando os marfins. O poente
já se afundava, o naufrágio da luz se espalhando pelo bairro. Foi
no curvar da esquina, o susto de um ilegível vulto. Se arrepiou
quando reconheceu a voz do adivinhador:
— Venho
buscar meus marfins.
Ele
desembolsou os inutensílios e os estendeu em concha para as mãos do
outro. Então, inesperadamente, sentiu as mãos presas, cativas do
feiticeiro. Primeiro, resistiu. Depois, experimentando a convicção
das outras mãos, foi esvanecendo. O adivinheiro adocicou a voz, em
modos de convite:
— Vem
comigo.
E
os dois pelo caminhinho não deixavam nenhuma pegada, fossem pisando
não a areia mas o céu.
Mia
Couto, in Estórias abensonhadas
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