terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Dos filhos e do matrimônio

Eu tenho uma pergunta somente para ti, irmão: como um prumo eu a lanço em tua alma, para saber quão profunda ela é.
És jovem e desejas matrimônio e filhos. Mas eu te pergunto: és alguém que pode desejar um filho?
És o vitorioso, o vencedor de si próprio, o soberano dos sentidos, o senhor de tuas virtudes? Assim te pergunto eu.
Ou em teu desejo fala o animal e a necessidade? Ou o isolamento? Ou a discórdia contigo?
Quero que tua vitória e tua liberdade anseiem por um filho.
Deves construir monumentos vivos à tua vitória e à tua libertação. Deves construir para além de ti. Mas primeiro tens de construir a ti mesmo, quadrado de alma e de corpo.
Não deves apenas te propagar, mas te elevar na descendência! Que nisso te ajude o jardim do matrimônio!
Um corpo mais elevado deves criar, um primeiro movimento, uma roda que gire por si mesma — um criador deves tu criar.
Matrimônio: assim chamo à vontade a dois de criar um que seja mais do que aqueles que o criaram. Reverência de um pelo outro, daqueles animados de tal vontade, chamo eu ao matrimônio.
Que seja este o sentido e a verdade de teu matrimônio. Mas aquilo que os demasiados, os supérfluos, chamam de matrimônio — ah, como o chamarei eu?
Ah, essa pobreza de alma a dois! Ah, essa sujeira de alma a dois! Ah, essa deplorável satisfação a dois!
Tudo isso chamam de matrimônio; e dizem que seus matrimônios são contraídos no céu.
Bem, não gosto desse céu dos supérfluos! Não, não gosto desses animais presos numa rede celeste!
Que fique longe de mim o deus que vem coxeando, para abençoar o que não uniu!
Não riais desses casamentos! Que criança não teria motivo para chorar por seus pais?
Digno me pareceu este homem, e maduro para o sentido da terra: mas, quando vi sua mulher, a terra me pareceu uma casa para doidos. —
Sim, eu queria que a terra tremesse em convulsões quando um santo cruzasse com uma gansa. Este saiu como um herói em busca de verdades, e enfim capturou uma pequena mentira enfeitada.
Chama a isso seu casamento.
Aquele era esquivo no trato e exigente na escolha. Mas de súbito estragou para sempre a sua companhia: chama a isso seu casamento.
Aquele procurava uma servente com as virtudes de um anjo. Mas de súbito se tornou a servente de uma mulher, e agora seria preciso tornar-se também um anjo.
Cautelosos me pareceram todos os compradores, e todos têm olhos astutos. Mas inclusive o mais astuto compra sua mulher como nabos em saco.
Muitas breves tolices — isto se chama amor entre vós. E vosso matrimônio acaba com muitas breves tolices, como uma única, prolongada estupidez.
Vosso amor à mulher e o amor da mulher ao homem: ah, fossem eles compaixão por deuses sofredores e ocultos! Em geral, porém, são dois animais que se descobrem.
E mesmo o vosso melhor amor é apenas símile arrebatado e doloroso ardor. É uma tocha que vos deve iluminar os caminhos mais elevados.
Um dia deveis amar além de vós mesmos! Então aprendei primeiro a amar! Por isso tivestes de beber o amargo cálice do vosso amor.
Há amargor até no cálice do melhor amor: assim ele produz anseio pelo super-homem, assim ele produz sede em ti, o criador!
Sede para o criador, flecha e anseio para o super-homem: diz-me, irmão, é essa a tua vontade de casamento?
Sagrados são, para mim, tal vontade e tal casamento. —
Assim falou Zaratustra.
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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