O
Sr. Prudente de Moraes Neto, falando sobre a nossa literatura de
ficção, pobre demais, fez-me há tempo uma observação que achei
curiosa. O romance brasileiro é ruim, os melhores escritores
emperram neste gênero. Por que será? Impotência? Talvez o ambiente
não ofereça material que preste.
Fiquei
surpreendido e com desejo de contrariar uma pessoa inteligente e
autorizada como o Sr. Prudente de Morais Neto. Pensei que ele tinha
sido rigoroso em demasia com alguns novelistas indígenas e
especialmente com o país, que deve ser como os outros países, salvo
pequenas diferenças. Em todos os lugares há romances, disse comigo,
o que falta às vezes é o romancista.
Liliput
e Brobdingnag nunca existiram e não obstante Swift pôs lá o seu
Gulliver. Um urso, uma pantera, uma cobra, um tigre, vários macacos
e lobos deram a Kipling, que não viveu na floresta e de homens só
utilizou um, que era quase bicho, assunto para dois livros da Jungle.
Onde houver um ser dotado de imaginação há uma obra de arte em
perspectiva.
É
certo que as criaturas que nos rodeiam são ordinárias, mas também
pode que o Raskolnikoff e a Sonia de Dostoievski fossem na realidade
um assassino comum e uma prostituta vagabunda, sem nenhuma espécie
de grandeza. Vendo-se impressos, talvez não se reconhecessem.
Matutei
nestas coisas quando li, há alguns meses, o segundo volume da série
que o Sr. José Lins do Rego iniciou com a publicação duma novela
escrita em brasileiro. 4 É um bom romancista, creio eu. E entretanto
decorre num ambiente de estreiteza lastimosa. Constituem o meio
físico as quatro paredes dum colégio — prisão do Nordeste, um
rio, pedaços de natureza entrevistos de relance. O meio social
compõe-se de cinco ou seis meninos de importância medíocre, um
professor brutíssimo, a mulher e o sogro do professor, uma preta,
uma vaga meretriz assanhada, mais algumas figuras que entram e saem
discretamente. Muito pouco! Mas apesar disso, e talvez por isso, o
Sr. José Lins do Rego fez um bom trabalho. Julgo que é um trabalho
admirável.
Se
o escritor dispusesse de grande número de tipos que se mexessem numa
cidade, é possível que não resistisse à tentação de, como
tantos outros, fornecer-nos pormenores inúteis. Jogando com
elementos escassos, teve de extrair quase tudo do seu interior.
Até
agora o Sr. José Lins do Rego publicou dois livros. Os críticos
andaram a compará-los. Qual seria o melhor? Pensando bem, acho que a
pergunta não tem cabimento: há apenas uma obra em dois volumes.
Provavelmente virão outros — e teremos uma pequena Comédia Humana
nordestina.
O
que há é que no primeiro, o Menino de Engenho
celebradíssimo, existem descrições que poderiam desaparecer sem
desvantagem, uma queimada e uma enchente por exemplo, bem-feitas, mas
que já foram exploradas por literatos de outras épocas, o finado
José de Alencar e o finado Graça Aranha inclusive. Esta opinião
não tem importância. De ordinário o que se julga melhor no romance
é exatamente a parte objetiva, e é provável que essas duas
tiradas, ricas em minudências, semelhantes às fotografias que
Balzac e os realistas aproveitaram, hajam concorrido para tornar
Menino de Engenho uma história admirada por toda a gente.
A
verdade é que o Sr. Lins do Rego não precisa recorrer ao pitoresco
para dar vida às suas criações. Nesse Doidinho excelente
não há excesso de tintas. As coisas não nos aparecem como são (e
quem sabe lá como são as coisas?), mas como o personagem principal
as vê. Esse personagem, sujeito inteligente e com um parafuso
frouxo, transmite-nos ampliados e interessantes os fatos mais
corriqueiros.
Não
sabemos como é por fora essa criança carregada de taras e cacoetes.
Será loura ou morena? Terá os olhos pretos, azuis, verdes ou
amarelos? E o resto? Estamos longe do tempo em que o cidadão gastava
eternidades para descrever um tipo das unhas dos pés à ponta dos
cabelos. Não esquecia uma ruga, não esquecia um botão da camisa.
No fim de tudo apresentava um manequim.
Presumimos
que o protagonista do Sr. Lins do Rego tem rugas, botões, olhos e
cabelos, como todos nós, mas o autor não nos amola com semelhantes
bagatelas: mostra-nos o rapaz por dentro. Surge então, vivo,
bulindo, um sujeito que não é como os outros, um sujeito cheio de
curiosidades e caprichos, indiferente às lições e à chatice da
escola, incapaz de marcar passo e marchar na fileira, movendo-se
desordenadamente e transformando, com os olhos e os ouvidos muito
abertos, o mundo exterior num universo novo.
Tudo
se anima. A água do rio não serve apenas para tirar-lhe a porcaria
ganha no colégio imundo: lava-lhe a alma e transporta, para o sítio
onde viveu, as suas tristezas de estudante maltratado. O bueiro do
engenho é um amigo velho que o chama de longe. Na sua memória o avô
deixa de ser o explorador da cabroeira que se esfalfa no eito:
muda-se numa espécie de santo que se preocupa com a sorte dum
assassino preso.
A
obra do Sr. Lins do Rego tem coesão. Às vezes a de escritores
grandes demais não a tem. Os livros do velho Hugo, os de Anatole
France, os de Machado de Assis estão cheios de soluções de
continuidade, intercalações, enxertos. Vendo esses parêntesis,
somos levados a pensar que certos autores ou trabalham com
interrupções, ou escrevem nas horas vagas folhas avulsas que
entremeiam nas suas narrações com mais ou menos habilidade. Entre
nós o comum é encontrarem-se romances arranjados com pedaços
desconexos. Lemos uma página boa, em seguida vinte páginas que não
são boas nem ruins, adiante uma péssima, depois uma sofrível — e
o leitor tem a impressão de estar vendo um desses gráficos do
serviço de estatística em que as linhas descem e sobem
desesperadamente.
É
possível que um olhar agudo descubra altos e baixos na obra do Sr.
Lins do Rego. Não notei isso. Também não me esforcei por encontrar
preciosidades. Pouco me satisfaria achar aqui um diálogo natural,
ali uma descrição encaixada a propósito, acolá uma frase
original. Essas descobertas só serviriam para prejudicar o conjunto,
seriam como elevações numa planície. Se me recomendassem uma
estátua por ter as mãos e os pés bem-feitos, eu não ficaria
contente. Preferiria que nem as mãos nem os pés fossem demasiado
bem-feitos, mas que estivessem em harmonia com as outras partes do
corpo.
De
resto esse trabalho de expor minúcias revela mão de especialista, e
no romance, campo vastíssimo, o especialista, a começar pelo
gramático, não ultrapassa as fronteiras do seu distrito.
O
Sr. Lins do Rego não é especialista em coisa nenhuma. Nada de
terminologias embaraçosas. Mostra simplicidade extraordinária,
põe-se facilmente em contato com o povo ignaro, como dizia Camões.
Dificuldade.
Outra
dificuldade, e terrível, foi ter conseguido tornar-se interessante
servindo-se desta pobre língua do Nordeste, língua bronca, incerta,
de vocabulário minguado. Língua braba, que o Sr. Mário Marroquim
procura domesticar. Notem que o matuto fala pouco diante de pessoas
sabidas. Quando o obrigam a falar, recorre aos gestos, usa
circunlóquios — e o discurso é charada. Uma só expressão,
variando com o tom da cantiga que é a conversa ordinária do
tabaréu, tem significações que nos atrapalham. Dialeto horrível
para a linguagem escrita.
Outra
coisa. Tenho estado a pensar que o Sr. Lins do Rego escreveria, se
quisesse, excelentes biografias. Como as de André Maurois. Valeria a
pena? Seria preferível transformar o velho Cotegipe numa espécie de
Disraeli? Talvez não fosse. Onde achar personagens? Parece que estou
inutilizando o que afirmei no começo deste artigo.
Mas
na biografia a imaginação não poderia fazer tudo.
Graciliano
Ramos, in Garranchos, (Revista Literatura, Rio de Janeiro,
20/06/1934)
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