Foram
apenas sete sessões de análise. E isso há décadas, mas até hoje
me lembro dos longos minutos de silêncio nas tardes de sexta-feira
(os insuportáveis momentos de mudez) e da fala lacônica, lacaniana
da minha analista paulistana.
Era
bela, alta, chique, tinha ombros largos, mãos delicadas e olhos de
coruja. E um tique estranho: erguia a sobrancelha esquerda, como
fazem certos atores, um tique que me parecia sedutor, mas isso podia
ser apenas uma percepção apressada do meu olhar narcisista. Ou
seria uma mensagem enigmática da minha querida lacaniana? Nunca
decifrei esse tique, que eu apelidei “farolete” porque o olho
esquerdo, em relevo, iluminava tenuamente o leito das lembranças e
confissões. Também desse olho solitário sinto saudades.
Durante
as sessões desconfortáveis (o divã era duro e estreito, quase uma
cama de faquir) eu falava dos romances e poemas que havia lido, da
descoberta de grandes livros, das fugas da faculdade de arquitetura
para assistir às aulas de literatura de Davi Arrigucci Jr. (quem não
tinha lido O escorpião encalacrado?). Falava de amigos
perdidos, de amigos em via de perdição, discorria sobre o nosso
sonho de justiça social, sobre a nossa sexualidade promíscua e
inocente que buscava a felicidade, sobre o nosso rancor à caretice e
a todo tipo de repressão e dogma. Só não falava de mim, do meu id,
do meu passado, da minha fase do espelho: nenhuma frase sobre a
infância e seus lances sombrios, mágicos ou iluminados. Tudo isso
permaneceu trancado a sete chaves, e essa porta blindada só seria
aberta mais tarde. Não que eu não tivesse traumas, neuroses,
frustrações. Quem não os tem? Em meados da década de 1970, os
estudantes da USP ou de qualquer outra universidade brasileira tinham
tudo isso de sobra. Talvez por ser resistente à sondagem da minha
psique, preferia comentar o conto “A terceira margem do rio”, que
era um modo oblíquo de falar do silêncio do meu pai ou do meu
autoexílio em São Paulo, que me faria uma espécie de órfão ainda
jovem.
Ela
apenas me escutava, o olho esquerdo saliente, ambarino, terrível.
Quando eu me calava, podia escutar o batimento grave do coração,
como se eu estivesse sozinho num cemitério de uma cidade-fantasma,
ou num deserto noturno, sem vento, congelado.
Numa
dessas sessões silenciosas ouvi um zumbido, que em poucos segundos
se tornou pavoroso; quando acordei, por pouco não caí no tapete.
Era o toque do despertador, que marcava o fim da sessão. Foi um
trauma e tanto. Minha analista, lacaniana radical, sequer anunciava o
fim do meu monólogo. Mas dessa vez o despertador interrompeu um
sonho, que eu anotei sem demora, sentado à mesa de um boteco. Na
sétima sessão deitei no divã e contei esse sonho.
Eu
estava no porão da gráfica da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo.
Eu e outros estudantes ouvíamos o discurso de Alex. Lembro que
reconheci líderes de diversos grupos políticos: da esquerda
católica à maoísta, dos rígidos trotskistas a seus inimigos
comunistas e social-democratas. Os anarquistas eram pouquíssimos e
ocupavam uma pequena ilha no porão do sonho: uma ilha banida do
continente. Em seu discurso, Alex nos alertava sobre os riscos e
perigos da traição. Olhei de soslaio em meu redor, procurando o
rosto de um suposto traidor; alguém me olhou com a mesma
desconfiança. Mas Alex não se referia a um delator, e sim a um
traidor de ideias e ideais. “Daqui a trinta anos”, ele disse,
“quantos de nós teremos traído nossos sonhos?”
Disse
à minha analista que nesse momento escutei murmúrios e protestos, e
logo em seguida me assustei com o trinado do maldito despertador. Ela
sorriu. Foi um sorriso aberto, oceânico, de lábios enormes. E
histórico: o primeiro em quase dois meses de divã. Também pela
primeira vez ela me fez uma pergunta frontal: “Quem é Alex?”.
“Um
estudante do curso de geologia”, eu disse. “Foi assassinado por
agentes da repressão em março de 1973. Pude reconhecê-lo no
sonho.”
Nessa
tarde troquei algumas palavras com a analista, uma conversa que durou
uns quatro ou seis minutos, e essa eloquência mútua me surpreendeu.
Enfim, palavras, eu disse. E quase elogiei a voz dela, uma voz que,
na minha memória de paciente, era sinônimo de assombração.
Abandonei
o divã naquela tarde chuvosa e prometi: um dia voltaria à sala
branca. Busquei refúgio na leitura de ficção e poesia, e assim
tentava espantar fantasmas e neuroses.
Poucos
anos depois, longe do Brasil e de seus generais, censores e
torturadores, comecei a escrever meu primeiro romance e descobri um
modo de ser menos infeliz, de mitigar o sofrimento e evitar o abismo
da depressão. A promessa de voltar à sala branca foi vã. Mas
tentei preencher as lacunas de silêncio com a linguagem escrita,
essa autoanálise compulsiva, prazerosa e fantasiosa, que alguns
chamam ficção.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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