Os
ovos estalam na frigideira, e mergulhada no sonho preparo o café da
manhã. Sem nenhum senso da realidade, grito pelas crianças que
brotam de várias camas, arrastam cadeiras e comem, e o trabalho do
dia amanhecido começa, gritado e rido e comido, clara e gema,
alegria entre brigas, dia que é o nosso sal e nós somos o sal do
dia, viver é extremamente tolerável, viver ocupa e distrai, viver
faz rir.
E
me faz sorrir no meu mistério. O meu mistério é que eu ser apenas
um meio, e não um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades:
não sou boba e aproveito. Inclusive, faço um mal aos outros que,
francamente. O falso emprego que me deram para disfarçar a minha
verdadeira função, pois aproveito o falso emprego e dele faço o
meu verdadeiro; inclusive o dinheiro que me dão como diária para
facilitar minha vida de modo a que o ovo se faça, pois esse dinheiro
eu tenho usado para outros fins, desvio de verba, ultimamente comprei
ações da Brahma e estou rica. A isso tudo ainda chamo ter a
necessária modéstia de viver. E também o tempo que me deram, e que
nos dão apenas para que no ócio honrado o ovo se faça, pois tenho
usado esse tempo para prazeres ilícitos e dores ilícitas,
inteiramente esquecida do ovo. Esta é a minha simplicidade.
Ou
é isso mesmo que eles querem que me aconteça, exatamente para que o
ovo se cumpra? É liberdade ou estou sendo mandada? Pois venho
notando que tudo o que é erro meu tem sido aproveitado. Minha
revolta é que para eles eu não sou nada, eu sou apenas preciosa:
eles cuidam de mim segundo por segundo, com a mais absoluta falta de
amor; sou apenas preciosa. Com o dinheiro que me dão, ando
ultimamente bebendo. Abuso ou confiança? Mas é que ninguém sabe
como se sente por dentro aquele cujo emprego consiste em fingir que
está traindo, e que termina acreditando na própria traição. Cujo
emprego consiste em diariamente esquecer. Aquele de quem é exigida a
aparente desonra. Nem meu espelho reflete mais um rosto que seja meu.
Ou sou um agente, ou é a traição mesmo.
Mas
durmo o sono dos justos por saber que minha vida fútil não
atrapalha a marcha do grande tempo. Pelo contrário: parece que é
exigido de mim que eu seja extremamente fútil, é exigido de mim
inclusive que eu durma como um justo. Eles me querem ocupada e
distraída, e não lhes importa como. Pois, com minha atenção
errada e minha tolice grave, eu poderia atrapalhar o que se está
fazendo através de mim. É que eu própria, eu propriamente dita, só
tenho mesmo servido para atrapalhar. O que me revela que talvez eu
seja um agente é a ideia de que meu destino me ultrapassa: pelo
menos isso eles tiveram mesmo que me deixar adivinhar, eu era
daqueles que fariam mal o trabalho se ao menos não adivinhassem um
pouco; fizeram-me esquecer o que me deixaram adivinhar, mas vagamente
ficou-me a noção de que meu destino me ultrapassa, e de que sou
instrumento do trabalho deles. Mas de qualquer modo era só
instrumento que eu poderia ser, pois o trabalho não poderia ser
mesmo meu. Já experimentei me estabelecer por conta própria e não
deu certo; ficou me até hoje essa mão trêmula. Tivesse eu
insistido um pouco mais e teria perdido para sempre a saúde. Desde
então, desde essa malograda experiência, procuro raciocinar deste
modo: que já me foi dado muito, que eles já me concederam tudo o
que pode ser concedido; e que Outros agentes, muito superiores a mim,
também trabalharam apenas para o que não sabiam. E com as mesmas
pouquíssimas instruções. Já me foi dado muito; isto, por exemplo:
uma vez ou outra, com o coração batendo pelo privilégio, eu pelo
menos sei que não estou reconhecendo! Com o coração batendo de
emoção, eu pelo menos não compreendo! com o coração batendo de
confiança, eu pelo menos não sei.
Clarice
Lispector, in Ovo e a galinha (trecho)
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