quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

O homem que viu os postes se dobrarem

Andando, notou que os postes estavam vergando, lentamente. Eram de concreto, altos, base grossa, um metro de diâmetro. Vergaram como se fossem de borracha, até que as lâmpadas se espatifaram no chão. O povo começou a correr, sem saber em que direção corria. Apenas porque quando alguma coisa fora do normal acontece, o povo corre. O homem é assim, racional. Corre, depois pergunta o porquê.
Não devia ser medo do poste cair em cima, porque eles se vergavam tão devagar, que a gente tinha tempo para decidir sair de lado e deixar o poste cair. Alguns ficavam paralisados e recebiam o poste na cabeça. Era concreto amolecido, mas pesado. As pessoas desmaiavam ou morriam, sabe-se lá. Ficavam estendidas, de olhos abertos.
Ele se aproximou e experimentou com o dedo. O concreto cedia, o dedo se enfiava no poste. Como geleia de mocotó. O que se passa? Que força é essa que atua sobre cimento endurecido? Enquanto as pessoas corriam e se escondiam, olhando pelas frestas de janelas e portais, ele, sozinho na avenida, examinava poste por poste. Quando chegou ao fim da quadra, percebeu que o cimento tinha endurecido outra vez. Mas os postes continuavam no chão, tortos.
Uma das características deste homem era enfrentar as coisas. Os postes que amoleciam era algo a se descobrir. Como? Partir de onde? Da análise da atmosfera naquele momento preciso? Qualquer coisa teria se passado com o ar, ou a luz, provocando reações inusitadas. Talvez um laboratório de física ou a faculdade de arquitetura pudessem ajudá-lo.
Foi lá, no dia seguinte. E perguntaram:
Mas dobrou-se, simplesmente? Como um arbusto? O cimento? Impossível.
Impossível como? Eu vi. Os postes estão na avenida, dobrados.
Foram até a avenida. A prefeitura, excepcionalmente, tinha derrubado os postes e amontoado num canto da calçada.
Viu só. Não era nada do que o senhor contava.
Mas vi! Experimentei com esse dedo. Não estou louco.
Deve ser o sol, disse um cientista. Ou a poluição, acrescentou outro. Ou raios gama, disse um jornalista.
Que nada. Os postes amoleceram e dobraram e precisamos saber por quê.
Por que precisamos saber?
Acontece uma coisa dessas e ninguém quer saber o porquê?
Saber certas coisas pode atrapalhar nossa vida. Melhor ignorá-las.
Preciso ir embora, disse um professor. Quase seis horas, tenho de bater o meu ponto, ou perco o domingo.
Ficou só, o homem. Olhando os postes, com os pés tortos. Começava a escurecer e a prefeitura tinha instalado luzes provisórias. Parecia decoração de Natal. O homem sentou-se no poste. Nem indignado nem surpreso com as atitudes. Era sempre assim, acomodação geral, ninguém queria nada com nada. Tinha tentado, porque as escolas possuíam aparelhos e recursos. Mas não usavam, o governo não dava verbas, os aparelhos eram para serem mostrados em aulas teóricas.
Então, o homem sentiu o cimento amolecer. E o poste foi se dobrando, dobrando. Até envolvê-lo. Como gigantesca jiboia dando um abraço mortal. O poste apertou, até os ossos se estalarem, estalarem. Reduzirem-se a uma pasta.
Ignácio de Loyola Brandão, in Cadeiras Proibidas

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