O casal se chegou, em dupla obscuridade.
Os dois pediam licença à penumbra. A mulher vinha mais dobrada que
gruta na montanha. Estava grávida, quase em fim do estado. Chegados
à claridade se reconheceu serem Diamantinho, o mais vizinho dos
residentes, e sua redonda esposa, Tudinha Rosa, retorcida em dores e
esgares. A pobre zululuava, em completas tonturas. Diamantinho,
porém, parecia alheio à mulher.
O casal comparecia em casa de Ananias e
Maria Cascatinha, os afáveis vizinhos. As duas donas ficaram na
varanda, já uma esteira se estendendo para o que desse e saísse.
Maria Cascatinha sorriu, timiúda: aquela era a sua mais pessoal
esteira. Não era um simples objeto de assentar. Sobre aquela esteira
haviam sido concebidos, de namoro e gemidos, seus todos filhos.
Diamantinho foi entrando, dando-se poiso
e posição, mais instalado que convidado. Sentou-se, convocou os
pedidos de uma bebida, serviu-se dos confortos. Ananias, o anfitrião,
ainda lhe reparou a atenção: não ia ajudar a sua derreada esposa?
O outro apenas sorria, saboreando prazeres desta e de outras vidas.
Ananias insistiu:
— Você, Diamantinho, não divide o
sofrimento familiar?
— Tem razão, Ananias, eu só penso da
minha pança para cá. Na realmente, não valho as penas. Também já
sou assim desde a barriga do meu pai.
Sobre a mulher, Diamantinho nem esboçou
menção. Tudinha Rosa permanecia fora, em posição de estar
deitada, descontorcida. Rejeitara, contudo, a esteira. Dar parto
devia ser sobre a terra, a mãe das mães. Assim é o mandamento da
tradição. Maria Cascatinha se agradecia por fato de a esteira ser
dispensada. E enrolou-a num cuidadoso canto. Tudinha assentava agora
sobre o mundo. Mas a carícia da terra de pouco lhe aliviava. A
mulher seguia em dor: os olhos já ímpares, as tripas já triplas.
Na sala, o marido servia-se da bebida
oferecida, vagueando os olhos em aplicações de preguiça. E
continuava a fiar conversa, sempre na mais concisa inexatidão:
— Me sinto ferrujado, Ananias. Não é
que eu seja mais velho que você. Eu nasci foi antes...
Ananias se enervava com a atitude do
visitante, mais displicientífico que pangolim. Bem se sabe: partos
são exclusivo assunto de mulheres. Diamantinho, no entanto, parecia
por de mais alheado. E tanto mais quanto, lá fora, as coisas agora
se complicavam. Tudinha desprogredia de nesga em vesga. Trocava tudo,
até as rezas: o padre-maria e a ave-nossa. Em aflição, Ananias
propôs ações e providências. Não seria melhor levar a grávida
até à vila? O candidato a pai, sereno como rio em planície, não
apresentava nenhum cuidado. Ordenou ao outro que sentasse, quieto. E
estendia o copo a solicitar mais enchimentos. Tudo sem perplexidades.
A mulher, sua indiscutível esposa, se
desdobrava em lancinantes gritos. Sobrinhas diversas se juntavam em
roda, debruçadas sobre a sofrimentada mãe. O nervoso círculo das
mulheres se podia ver pela janela. Até que Ananias foi chamado, em
convocação de auxílio. Ananias sugeriu ao visitante que os dois
acudissem mas o outro ripostou que estava a acabar uma bebida ainda
mal começada. Que depois iria, já em tempo e disposição de
proceder devidamente. Por enquanto, ele descascava o tempo,
impassível como tronco de embondeiro.
Ananias rompeu a tradição, juntando-se
ao parto que se demorava e às parteiras que se enervavam. Dúvidas
gerais se começavam a espalhar. Todos, afinal, sabem: parto que se
prolonga significa infidelidade da mulher. Para salvar a situação,
a grávida deve admitir o pecado, divulgar o nome do autêntico pai
da criança. Caso o contrário, então, o bebê
fica retido no ventre, sem mês nem signo.
Então, no meio de gritos, suspiros e
transpiros, Tudinha Rosa confessou ter trocado amores com Ananias, o
próprio e presente anfitrião. Maria Cascatinha ficou em estado de
nem-estar: seu marido, pai de alheio rebento? Porém, continuou seu
trabalho de parteira, inalterável. Só os olhos dela se
descomportavam, derramados. Sem palavra, ela findou a obra de
desbarrigar a sua súbita adversária. No princípio, a confissão de
Tudinha fora um simples murmúrio, não se ouvindo para além do
recinto. Nos últimos esforços, porém, a grávida foi alardeando a
consumada traição:
— Foi Ananias, foi ele!
Dentro, tudo se ouviu. Foi como se mundo
abrisse rochas e rachas. Diamantinho, nesse repente, mudou da
alvorada para o poente.
Saiu para a varanda com cara de marido,
em ares de pareceres e pancadarias. Numa palavra: chocado e
chocalhado. Descia de sujeito para fulano, de fulano para tipo. Nunca
antes se vira tal metamorfase. Ele se enraivecia a ponto de lâminas
e pólvoras. E gritou ameaças e impropérios: haveria Ananias de
beijar os pés que ele pisasse. Entre os dois homens se procederam a
estrondosas porradarias.
Enquanto socos e insultos se trocavam, o
novo menino foi emigrando para a luz. Diamantinho e Ananias nem deram
contas do nascimento. Tudinha e o recém-nascido foram levados para
um interior quarto, em resguardo. Ananias, aviado de uns tantos
sopapos, se recolheu no mesmo aposento da respectiva grávida. Ali
ficou o tempo de muitas vidas. Na sala, Diamantinho soprou raivas,
invocando feitiços e péssimos-olhados contra o dito Ananias.
Depois, se derreou, infeliz como a casca sem a banana.
Maria Cascatinha, surgida de igual
tristeza, veio a amparar o traído Diamantinho. Lhe assentou o braço
sobre o ombro e lhe disse que lhe acompanhava, rumo a casa. Diz-se
que Maria Cascatinha nunca mais voltou. Nem para buscar a sagrada
esteira.
Mia
Couto,
in Estórias
abensonhadas
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