Há
muitos anos, visitei Adélia Prado em Divinópolis. Levou-me para a
cozinha e, enquanto descascava batatas, conversamos sobre Virgílio.
Nos intervalos, enxugava as mãos em um pano e recitava poemas. O
avental estava amassado e os cabelos presos com um elástico. Era uma
mulher qualquer, sem pose ou orgulho. A poesia era tão simples
quanto um prato de arroz.
Tantos
anos depois, com a mesma voz sem afetação, Adélia Prado entrega a
seus leitores um novo livro. Versos em que a palavra se mistura com a
aflição. “Escreve-se para dizer/ sou mais que meu pobre corpo”.
As palavras lutam para ultrapassar a carne, mas ficam presas em suas
fendas. Ninguém se livra de si. A poesia tenta disfarçar a dor,
mas, em vez disso, a dor se duplica.
Escreve
Adélia: “Os óculos do escritor o atestam/ lentes que para dentro
olham”. Como se não fosse poeta, observa a figura do escritor em
seu gabinete. Observa a si mesma, que tem uma cozinha (peneiras,
conchas, panelas) como sala de escrita. Enquanto escreve, Adélia
entra em si mesma. Busca alguma coisa sem forma e sem nome que ela,
religiosa, talvez chame de alma.
Não
importa a palavra. A duração do dia (Record), seu novo livro
de poemas, parte da ideia (tomada do poeta polonês Czeslaw Milosz)
de que “a poesia é algo horrível”. A beleza se mistura com o
horror. Penso nos poetas pernósticos que pontificam, cheios de
ideias, nas livrarias. Desconhecem o veneno em que afundam. Mas será
que afundam ou, retidos na superfície, só esperneiam?
Não
é fácil suportar o espanto. Ele não vem de fora, das esferas
hostis do inimigo, mas de dentro. “Nasce de nós uma coisa que não
sabíamos que está dentro de nós”, Adélia diz. O poeta é um ser
passivo, que se esconde nos fornos e nas dispensas, e não esse
tagarela que pontifica nos bares. “Caminho sobre o planeta/ como os
equilibristas em suas bolas gigantes/ não se sai do lugar/ de si
mesmo não se pode sair”.
Dizem
os pedantes que Adélia repete sempre a mesma pergunta a respeito de
Deus. Não percebem que essa ronda é a própria poesia. Preso em si,
o poeta não habita o paraíso. Pode ver Deus, mas está no inferno.
Adélia o descreve: “Amo o deserto,/ mas por causa das cobras/ não
alcanço o repouso/ de sua cama de areia”.
Sempre
que leio Adélia, me assombro com as figuras antigas que rastejam
entre seus versos. Lentas e imundas, arrastam a placenta. Elas
lembram o galo que, olhando fixo para lugar nenhum, “bruto como um
profeta”, anuncia “a luz arcaica,/ a que antes de tudo/ no
coração da treva preexistia”. Assim escreve Adélia: descascando
o arcaico.
Persegue
o território que antecede a palavra. Função da poesia: em vez de
narrar, ou comunicar, ou evocar – entrar em contato com o que não
se deixa dizer. Voltar aos tempos remotos em que gaguejávamos.
Recuperar os murmúrios que antecederam as palavras e que ainda hoje,
como cobras desprezíveis, rondam o cotidiano. Ali se guarda o pior,
mas também o melhor.
Em
um poema chamado “Divinópolis”, Adélia evoca o pai morto.
Quando o trem passou, uma grande composição, ele, o pai,
corrompendo a palavra, disse: “cumpusição”. Com ele, aprendeu a
delícia de torcer a língua e gaguejar. Versos que brilham como
relíquias de ouro velho “restam inaproveitáveis”. Versos não
devem reluzir, mas talhar. A poesia não é uma pose, mas uma queda.
Assim
define Adélia: “Ao crepúsculo me visita/ essa memória dourada,/
mentira meio existida,/ verdade meio inventada”. A poesia é, por
definição, suja, e só por isso se aproxima de Deus. Ambos, Deus e
poesia, não suportam a pressão do nome. Dizemos: poesia, Deus –
mas o que isso significa? Palavras, ela sugere, não passam de
miseráveis aparências. “Nome é tão importante/ quanto o jeito
correto de se apresentar a entrevistas”, diz, com ironia.
Palavras
são disfarces, precárias fantasias. “As palavras cansam porque
não alcançam/ e preciso de muitas pra dizer uma só”. Ao
contrário do filósofo que afia e cultua o conceito, o poeta
enxovalha a palavra, a desgasta, retorce. Só a usa porque algo lhe
falta. Tivesse mais, e se calaria. O silêncio é o ideal do poeta.
Ao escrever, Adélia puxa uma pele atrás da outra e, como nas
cebolas, chega sempre a um centro vazio.
“O
orgulho fede como um bom cadáver”, ela diz, como se ajoelhasse –
não diante de Deus (ou que seja), mas do próprio corpo. Na verdade,
não é Adélia que se ajoelha. Algo nela se abaixa e, quando vê,
está deitada no silêncio. Conhece o horror que sai de si. “Ter
medo é saber do inaudito/ ninguém até hoje explica/ por que batem
as pálpebras”, ela diz. Ajoelha-se diante do que não se pode
dizer, não como reverência ou adoração, mas por cansaço mesmo. E
isso, ceder ao peso do mundo, é a poesia.
Eu
a vi refogando legumes, esfregando panelas. Gestos simples e
mecânicos, quase feios. Ali, entre ovos e xícaras, encontrei seu
caderno de versos. “Não queria palavras para rezar/ bastava-me ser
um quadro/ bem na frente de Deus/ para Ele olhar”. Basta-lhe o
silêncio e os joelhos ardendo sobre a terra dura. Eis a poesia: no
lugar do autor onipotente e falastrão, uma mulher que se esvazia e
se cala. Em vez do brilho, a submissão. Eis, enfim, o erotismo. O
gesto de seduzir e se entregar não é uma rendição, mas uma
celebração.
“Ah,
Adélia, isso não é poesia”, dizem. Quantos a recusam, só porque
ela se nega ao brilho? O que não suportam? “Deus não é uma luz”,
escreve, “Deus é pessoa”. Está a seu lado, junto ao fogão,
talvez de cócoras. Juntos, observam as palavras, estendidas sobre a
mesa, retalhadas pela dor, sangrando. Quase inúteis – porque não
dão conta da carne. E, no entanto – eis o horror –, tudo o que
um poeta tem é a poesia. “Ainda me restam coisas mais potentes que
hormônios.”
Revejo
Adélia, entre os filhos, abnegada. À distância, admira o marido,
não porque ele seja especial (talvez seja), mas porque é um homem.
A poesia de Adélia nos reaproxima da vida. Debruçada sobre a pia,
perplexa, ela fita a água suja que escorre pelo ralo. Vigia a
poesia, que não passa do que sobra quando, com a boca trêmula,
lutamos para falar.
José
Castelo, in Sábados inquietos
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