Naquele
tempo os jornalistas eram homens que fabricavam desaforos com tinta.
Os
de hoje também fabricam, mas antigamente os desaforos eram mais
pesados e mais numerosos.
Dedicar-se
alguém a essa hidrofobia impressa, agradável aos leitores e
desagradável aos políticos, é arriscado e exige músculo abundante
e ossos espessos, atributos que dificilmente se encontram em
articulistas. Eles têm, é verdade, bastante coragem, mas a coragem
dura apenas o tempo necessário à produção dos artigos. Com as
portas cerradas e Deus por testemunha, todos nós somos criaturas
naturalmente dispostas — e arranjamos sozinhos diálogos admiráveis
em que espatifamos adversários com habilidade espantosa.
É
impossível conhecer-se a dignidade toda que há nos homens: de
ordinário ela fica escondida. Surge às vezes nas conversas em que
pessoas imaginosas contam rasgos de heroísmo que praticaram e nos
insultos escritos para os jornais.
É
aí que o indivíduo se supera, como dizia o Zaratustra, e se, em
horas de trabalho, o literato valente visse aparecer-lhe um perigo
sério, é provável que, impossibilitado de se transformar de
repente, tivesse um pouco das qualidades que julga ter.
Infelizmente
as folhas descem para a composição — e certas ideias importunas
começam a picar o redator. Na revisão cortam-se alguns adjetivos
cabeludos; como, porém, a coragem ainda existe, outros permanecem.
De resto é preciso que um intelectual não se acanalhe perante os
tipógrafos. Resultado: no dia seguinte há conveniência em o
jornalista não sair de casa ou sair com precaução, olhando para os
cantos e evitando encontros prejudiciais à ordem pública.
Realmente
a tranquilidade só chega quando vem a certeza de que a vítima,
fingindo superioridade, não ligou importância ao ataque. Aí o
articulista sabe, sem nenhuma sombra de dúvida, que é bravo.
Com
exercício, no decorrer dos anos, a bravura aumenta.
Podem
advir, entretanto, mal-entendidos e sucessos deploráveis. Criaturas
de índole selvagem, ignorando que a imprensa é um sacerdócio e
pode gritar, arranhar, morder impunemente, indignam-se quando são
alvejadas com retórica e vingam-se com pancadas. Temos visto alguns
desses mártires da liberdade do pensamento, cobertos de glórias e
de esparadrapos.
Para
poupar sacrifícios inúteis foi que, em épocas passadas, se
instituiu o testa de ferro, figura de que os escritores idosos se
lembram.
Era
o padrasto das diatribes que as folhas publicavam.
Não
valia nada, falava difícil, discutia todos os assuntos, conhecia
frases latinas, não escrevia, não se ocupava em coisa nenhuma e
ganhava cinquenta mil réis por mês, uma insignificância
atualmente, mas quantia razoável no tempo em que havia câmbio.
Se
um jornal trazia publicação escandalosa, os ofendidos tinham dois
caminhos, é claro: partir a cara do autor ou levá-lo à Justiça.
Quem foi, quem não foi — e o barulho começava.
Nesse
ponto o testa de ferro assinava uma declaração responsabilizando-se
pelas injúrias e calúnias presentes e futuras. E a parte contrária,
desarmada, metia a viola no saco, porque ninguém quereria entreter
com semelhante personagem uma briga chinfrim em calçadas ou uma
pendência ridícula no foro.
Daí
em diante a gazeta podia insultar à vontade. Ah! Já tivemos
liberdade de pensamento.
E
a reputação do testa de ferro crescia. O testa de ferro era
considerado.
Sofria,
é certo, alguns dissabores sem consequências graves: quebravam-lhe
uma costela ou duas, de longe em longe, em noites de escuro. Tolice.
Em toda parte há sempre costelas quebradas.
Enquanto
o nosso homem se consolidava, a literatura política florescia
jogando bilhar, dançando na Phenix ou declamando discursos.
O
testa de ferro desapareceu. Habituado a viver em redações, acabou
mexendo os pronomes, fez sonetos e compôs arengas compridas. Depois
morreu. Faz pena.
Por
isso deixam de circular hoje em dia muitas descomposturas.
Graciliano
Ramos, in Garranchos [Jornal de Alagoas, 16/08/1931]
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