sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

O testa de ferro

Naquele tempo os jornalistas eram homens que fabricavam desaforos com tinta.
Os de hoje também fabricam, mas antigamente os desaforos eram mais pesados e mais numerosos.
Dedicar-se alguém a essa hidrofobia impressa, agradável aos leitores e desagradável aos políticos, é arriscado e exige músculo abundante e ossos espessos, atributos que dificilmente se encontram em articulistas. Eles têm, é verdade, bastante coragem, mas a coragem dura apenas o tempo necessário à produção dos artigos. Com as portas cerradas e Deus por testemunha, todos nós somos criaturas naturalmente dispostas — e arranjamos sozinhos diálogos admiráveis em que espatifamos adversários com habilidade espantosa.
É impossível conhecer-se a dignidade toda que há nos homens: de ordinário ela fica escondida. Surge às vezes nas conversas em que pessoas imaginosas contam rasgos de heroísmo que praticaram e nos insultos escritos para os jornais.
É aí que o indivíduo se supera, como dizia o Zaratustra, e se, em horas de trabalho, o literato valente visse aparecer-lhe um perigo sério, é provável que, impossibilitado de se transformar de repente, tivesse um pouco das qualidades que julga ter.
Infelizmente as folhas descem para a composição — e certas ideias importunas começam a picar o redator. Na revisão cortam-se alguns adjetivos cabeludos; como, porém, a coragem ainda existe, outros permanecem. De resto é preciso que um intelectual não se acanalhe perante os tipógrafos. Resultado: no dia seguinte há conveniência em o jornalista não sair de casa ou sair com precaução, olhando para os cantos e evitando encontros prejudiciais à ordem pública.
Realmente a tranquilidade só chega quando vem a certeza de que a vítima, fingindo superioridade, não ligou importância ao ataque. Aí o articulista sabe, sem nenhuma sombra de dúvida, que é bravo.
Com exercício, no decorrer dos anos, a bravura aumenta.
Podem advir, entretanto, mal-entendidos e sucessos deploráveis. Criaturas de índole selvagem, ignorando que a imprensa é um sacerdócio e pode gritar, arranhar, morder impunemente, indignam-se quando são alvejadas com retórica e vingam-se com pancadas. Temos visto alguns desses mártires da liberdade do pensamento, cobertos de glórias e de esparadrapos.
Para poupar sacrifícios inúteis foi que, em épocas passadas, se instituiu o testa de ferro, figura de que os escritores idosos se lembram.
Era o padrasto das diatribes que as folhas publicavam.
Não valia nada, falava difícil, discutia todos os assuntos, conhecia frases latinas, não escrevia, não se ocupava em coisa nenhuma e ganhava cinquenta mil réis por mês, uma insignificância atualmente, mas quantia razoável no tempo em que havia câmbio.
Se um jornal trazia publicação escandalosa, os ofendidos tinham dois caminhos, é claro: partir a cara do autor ou levá-lo à Justiça. Quem foi, quem não foi — e o barulho começava.
Nesse ponto o testa de ferro assinava uma declaração responsabilizando-se pelas injúrias e calúnias presentes e futuras. E a parte contrária, desarmada, metia a viola no saco, porque ninguém quereria entreter com semelhante personagem uma briga chinfrim em calçadas ou uma pendência ridícula no foro.
Daí em diante a gazeta podia insultar à vontade. Ah! Já tivemos liberdade de pensamento.
E a reputação do testa de ferro crescia. O testa de ferro era considerado.
Sofria, é certo, alguns dissabores sem consequências graves: quebravam-lhe uma costela ou duas, de longe em longe, em noites de escuro. Tolice. Em toda parte há sempre costelas quebradas.
Enquanto o nosso homem se consolidava, a literatura política florescia jogando bilhar, dançando na Phenix ou declamando discursos.
O testa de ferro desapareceu. Habituado a viver em redações, acabou mexendo os pronomes, fez sonetos e compôs arengas compridas. Depois morreu. Faz pena.
Por isso deixam de circular hoje em dia muitas descomposturas.
Graciliano Ramos, in Garranchos [Jornal de Alagoas, 16/08/1931]

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