quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

O homem que dissolvia xícaras

Na manhã de terça-feira ele descobriu. Ao apanhar uma xícara de ágate, a xícara se derreteu. Aliás, na verdade, a xícara se dissolveu, desintegrou. A tinta branca melou suas mãos, enquanto ele contemplava o fenômeno surpreso, assustado e maravilhado. Antes que a mulher viesse para a cozinha, ele limpou as mãos e ficou sentado diante de uma nova xícara, desta vez de louça. Imaginando como teria sido contemplado com tal propriedade. Não era homem de acreditar em milagres, inspiração divina, sinal para o escolhido. Nada disso. Procurava, isto sim, tentar estabelecer em sua cabeça os motivos puramente físicos que teriam ocasionado tal reação entre sua mão e uma xícara. Nesta época em que as transformações são totais, também a matéria tinha sido finalmente atingida pelas mutações que ocorrem sem cessar. E era uma coisa boa, de repente, ao café da manhã, sentir-se que não era mais um homem comum.
Agora, havia nele alguma coisa que o diferenciava dos outros. Até então, apesar de esclarecido e de ler bastante, ao menos de tentar ler um pouco mais do que o razoável, do que a média, sentia-se esmagado por um sentimento de frustração inquietante. Era um homem igual a milhares e milhares e morreria assim, não tendo acrescentado à vida, própria e dos outros, uma parcela mínima de bem ou de mal. Nem era caso de se medir em termos de bem ou mal. Ele sofria por não poder contribuir em nada para fazer o mundo um pouco diferente; um pouco só bastava.
Sua vida resumia-se no escritório asséptico, montado por um decorador profissional, um homem que ele jamais vira, mas um especialista que percorrera o mundo olhando outros escritórios e trazendo a sua experiência. A segunda parte de sua vida consistia na casa, igualmente esterilizada, móveis exatos em locais exatos, quadros predeterminados em lugares determinados e em alturas padronizadas. Nenhuma desorganização, tudo de acordo com os catálogos. Ele falava de negócios no escritório e de filhos em casa. Os amigos vinham e as mulheres dos amigos falavam de empregadas e os homens de futebol, negócios, carros novos, viagens à Argentina e Miami, cotação do peso, vantagens que eles teriam em viajar agora.
Tornara-se um hábito, mais do que isso, necessidade, ele vomitar depois de cada reunião em sua casa. Assim que a porta se fechava e o último amigo ia embora, ele corria ao banheiro, punha tudo para fora. Não pusesse, sofria uma dor de cabeça que permanecia por dias e dias. Então adquirira o costume, salutar, de enfiar o dedo na garganta e fazer a limpeza. A mulher achava que tinham sido os uísques e comentava como ele bebia pouco e ficava tonto, como se tornara fraco. Jamais tinha ligado as coisas: reunião, conversas, vômitos.
Depois, as coisas pioraram, ele passou a sair correndo no meio dos jantares e encontros. Ia para o banheiro e punha até bílis para fora. O tempo passou. Aí, à simples menção de uma reunião com os amigos, o estômago se revirava. A mulher mandou um dia chamar um médico. Obrigou-o a fazer um check-up. Ela tinha visto um comercial na televisão, os amigos no enterro e comentando como o defunto era tão novo e como podia ter evitado a morte prematura. Claro que o check-up não revelou nada, a mulher ficou contente e o homem sofrendo com os 3 mil cruzeiros perdidos. Como revelar a verdadeira causa? Quem entenderia? Afinal, não é egoísta, brutal, frio, cínico, tudo o que há de ruim, um homem que não consegue estar bem com seus amigos, sua família, tudo o mais? Uma vida perfeita, salário alto, dois carros, dois celulares, uma casa de campo, uma casa de praia, o que ele quer mais?
Ele mesmo não sabia de onde tirara aquela angústia. Ficava morto de remorso ao contemplar o que tinha e não se sentir satisfeito. Chegou a entender que um dos problemas era que estava tudo no mesmo nível. Que ele navegava num mar sem ondas, a sua vida possuía flutuadores perfeitos, por pior que fossem as vagas ele se balançava pouco. Onde estava o erro de tudo? Talvez estivesse em tentar entender as coisas, em se situar, querer saber.
Jamais pensara em se matar, era um obstinado e um desafiador. O grande mistério estava à sua frente, era a sua existência. Se a eliminasse, não haveria desafio, enigmas, jogo. Nem razão de ser. Contemplá-la com inquietação e angústia passou a ser muito importante.
Até que na manhã de terça-feira ele conseguiu dissolver a xícara em suas mãos. Não! Não queria entender o mistério. Ao menos tão já não queria. Nem se importava. Que as coisas corressem e os amigos viessem. Por algum tempo, quando se sentisse nauseado, apanharia uma xícara de ágate e não se sentiria tão igualado. Mais tarde, estudaria o rumo a seguir.
Ignácio de Loyola Brandão, in Cadeiras Proibidas

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