Você
conhece a Ilha da Merenda? Nem eu. Mas gosto de saber que Minas
Gerais tem uma Ilha da Merenda. Onde fica? Isso eu posso dizer a
você, fica no rio São Francisco, entre a foz do córrego do Frade e
a barra do rio Abaeté. Ou não fica mais, e acabou porque fizeram
barragem, esse negócio de mexer com os rios para produzir energia,
essa violentação da natureza que dizem ser necessária para
sustentar o homem? Bem, não me meto nessas funduras, nem vou sair do
meu canto para espiar se ainda tem por lá a Ilha da Merenda. Quero
só curtir com você esse nome, essa ideia de ilha aonde a gente
chega só para merendar, então a gente merenda — de preferência
sobre a relva, como no quadro de Manet ou no quadro de Cézanne, e
depois volta, ninguém mora na Ilha da Merenda, não deve morar. Essa
ilha é uma pausa, as aves de lá, as árvores de lá sabem disso,
não se importam muito com as visitas, ninguém vai lhes fazer mal,
tudo é calma e fugacidade no intervalo.
Você
pensa que minha terra, não sendo marítima, tem um punhadinho à-toa
de ilhas? Está muito enganada. Nós temos a Ilha dos Bugres, que não
tem bugres; teve. É ali acima da barra do rio Correntes de Canoas.
Se ao menos deixassem os bugres ficarem por lá, longe de posseiros,
de aculturadores, de integracionistas! Não deixaram, mas também
deste nome eu gosto, e no faz-de-conta boto ali uma assembleia
altaneira de índios, resistente à máquina protecionista e à
cobiça dos invasores, tudo por conta própria, mantendo orgulhosa a
derradeira república nativa do Brasil… Você vai pensar que estou
meio pinel. Estou não, estou é vivendo a magia dos nomes de
ilhas.
Ah,
a Ilha da Preguiça! O rio Doce, que é meu rio de nascença,
sagrou-se mestre em ilhas assim, convidando ao devaneio. Esta aqui
fica antes da barra do rio Esplendor, que na boca do povo se
arredonda em Esplandor. Uma ilha destinada exclusivamente à
preguiça, aos preguiçosos jogos de não fazer nada ou de fazer
muito devagar, muito depois de depois de amanhã, uma ilha toda ócio,
calme et volupté. As plantas não têm pressa de crescer; por
isso crescem mais docemente, com viço mais tranquilo e também mais
duradouro. Os animais dormem; se acordam é para tornar a dormir,
dando ritmo ao sono. Até nas pedras há uma preguiça de reluzir ao
sol, que as torna menos rígidas; são pedras que não fazem questão
do estado mineral; estão à espera de se definir, sem afobação. É
assim a Ilha da Preguiça, aonde um dia iremos nós dois,
espreguiçar-nos de sociedade com tudo que cumpre lá seu destino
indolente.
Agora,
você já viu coisa mais mineira, caligraficamente sutil e bonita
como geografia, do que a Ilha da Cabeça do M, junto ao cachoeirão
do M, um M líquido, bordado em espuma cadente, inicial-resumo do
santo nome de Minas? Do vértice do M cai a espumarada, a envolver de
nuvens essa maior ilha de Minas, que é a própria Minas, tida como
constelação de montanhas, mas por isso mesmo ilhada, alta ilha,
ilha alterosa, a tamanha altura do nível do mar, ilha suspensa.
Ensandeço?
Não. São as ilhas que subvertem a razão natural, interrompendo a
continuidade do mundo. Elas se isolam, orgulhosas ou prudentes. Mas
vamos adiante. Se estamos no rio Doce, cheguemos à ilha irônica do
Talaveira, do maturrango, do mau cavaleiro, do bisonho no lidar com
lavoura ou gado. Minas gosta de brincar com o imperfeito. E acha
nomes engraçados para suas ilhas, como a da Pindaíba (ouço ainda a
voz dos mais velhos: “Estou numa pindaíba danada”), tem a dos
Casados e a das Marias; a do Periquito e a do Alferes, não sei se
homenagem a Tiradentes ou alusiva a um dono qualquer de uniforme. Tem
a dos Estados, a dos Pombos, a das Antas, a das Batatas e esta outra
que faço questão de inventar uma história para ela: a Ilha
Lucrécia, tão bórgia! Onde príncipes, cardeais, assassinos e
outros figurantes, entre eles, uma turma ilustríssima de poetas e
artistas, se dedicam às mais diversificadas aventuras em tomo dessa
dama egrégia. Furo sensacionalíssimo de reportagem: Lucrécia, a
magnífica, em Minas Gerais, numa ilha particular, tão particular
que nela só pode ter acesso minha fantasia deste momento e você, se
me der crédito e o prazer de acompanhar-me até lá…
Não,
desisto de surpreender Lucrécia em sua ilha cativa. Minas é
surrealista, concordo, mas sem exagero; conservo a justa medida das
coisas, até no absurdo. Fiquemos por aqui, você e eu habitando em
pensamento as ilhas que afloram em Minas, que enfloram Minas, essa
ilha maior balançando no alto dos montes e serras…
Carlos
Drummond de Andrade, in Boca de luar
Que crônica deliciosa, que leio ilhado na minha sala, a percorrer ilhas mineiras e suas curiosidades, tesouros desconhecidos, alimentado pelas imagens poéticas desse Poeta Maior!
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