quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Efemérides

Embora só tivesse nela a pequena flama indispensável: um sopro de vida. (Estou passando por um pequeno inferno com esta história. Queiram os deuses que eu nunca descreva o lázaro porque senão eu me cobriria de lepra.) (Se estou demorando um pouco em fazer acontecer o que já prevejo vagamente, é porque preciso tirar vários retratos dessa alagoana. E também porque se houver algum leitor para essa história quero que ele se embeba da jovem assim como um pano de chão todo encharcado. A moça é uma verdade da qual eu não queria saber. Não sei a quem acusar mas deve haver um réu.)
Será que entrando na semente de sua vida estarei como que violando o segredo dos faraós? Terei castigo de morte por falar de uma vida que contém como todas um segredo inviolável? Estou procurando danadamente achar nessa existência pelos menos um topázio de esplendor. Até o fim talvez o deslumbre, ainda não sei, mas tenho esperança.
Esqueci de dizer que às vezes a datilógrafa tinha enjoo para comer. Isso vinha desde pequena quando soubera que havia comido gato frito. Assustou-se para sempre. Perdeu o apetite, só tinha grande fome. Parecia-lhe que havia cometido um crime e que comera um anjo e, porque acreditava, eles existiam.
Nunca havia jantado ou almoçado num restaurante. Era de pé mesmo no botequim da esquina. Tinha uma vaga ideia que mulher que entra em restaurante é francesa e desfrutável.
Havia coisas que não sabia o que significava. Uma era “efeméride”. E não é que Seu Raimundo só mandava copiar com sua letra linda a palavra efemérides ou efeméricas? Achava o termo efemírides absolutamente misterioso. Quando copiava prestava atenção a cada letra. Glória era estenografa e não só ganhava mais como não parecia se atrapalhar com as palavras difíceis das quais o chefe tanto gostava. Enquanto isso a mocinha se apaixonara pela palavra efemérides.
Outro retrato: nunca recebera presentes. Aliás não precisava de muita coisa. Mas um dia viu algo que por um leve instante cobiçou: um livro que Seu Raimundo, dado a literatura, deixara sobre a mesa. O título era “Humilhados e Ofendidos”. Ficou pensativa. Talvez tivesse pela primeira vez se definido numa classe social. Pensou, pensou e pensou! Chegou à conclusão que na verdade ninguém jamais a ofendera, tudo que acontecia era porque as coisas são assim mesmo e não havia luta possível, para que lutar?
Pergunto eu: conheceria ela algum dia do amor o seu adeus?
Conheceria algum do amor os seus desmaios? Teria a seu modo o doce voo? De nada sei. Que se há de fazer com a verdade de que todo mundo é um pouco triste e um pouco só. A nordestina se perdia na multidão. Na praça Mauá onde tomava o ônibus fazia frio e nenhum agasalho havia contra o vento. Ah mas existiam os navios cargueiros que lhe davam saudades quem sabe de quê. Isso só às vezes. Na verdade saía do escritório sombrio, defrontava o ar lá de fora, crepuscular, e constatava então que todos os dias à mesma hora fazia exatamente a mesma hora. Irremediavelmente era o grande relógio que funcionava no tempo. Sim, desesperadamente para mim, as mesmas horas. Bem, e daí? Daí, nada. Quanto a mim, autor de uma vida, me dou mal com a repetição: a rotina me afasta de minhas possíveis novidades.
Por falar em novidades, a moça um dia viu num botequim um homem tão, tão, tão bonito que — que queria tê-lo em casa. Deveria ser, como — como ter uma grande esmeralda-esmeralda-esmeralda num estojo aberto. Intocável. Pela aliança viu que ele era casado. Como casar com-com-com um ser que era para-para-para ser visto, gaguejava ela no seu pensamento. Morreria de vergonha de comer na frente dele porque ele era bonito além do possível equilíbrio de uma pessoa.
Clarice Lispector, in A hora da estrela

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