Numa
escavação feita em Kalibangan, em 1922, pelo pesquisador inglês
John Marshall, foi encontrada, em meio a estátuas de Vishnu e Shiva,
homens de três cabeças e altares sacrificiais, a pedra
shalagrama-shila, de que o arqueólogo ouvira falar e que se tornara
sua obsessão ao longo de mais de vinte anos de buscas e trabalhos
extenuantes. Conhecia a crença vigente no vale do rio Gandaki, que
dizia que uma pessoa, apenas por tocar uma pedra como aquela, se
libertaria dos pecados não somente de sua própria existência, como
também das existências de milhões de nascimentos anteriores e
posteriores ao seu, pois a pedra representa o Bhagavan em pessoa, a
soma total de todos os universos. E, embora não partilhasse das
crenças hindus que pregavam essas supostas verdades, também sabia
que não poderia tocá-la frivolamente, porque não queria profanar
um credo de tamanha beleza e fervor. Além disso, em algum lugar de
sua memória e de sua alma obsessiva e cansada, afora o respeito que
devotava aos hindus, existia uma sombra de fé, sem contar as
experiências que havia testemunhado entre os hindus e mesmo entre os
ocidentais, de pessoas que desmaiavam ou com quem ocorriam acidentes
estranhos assim que ousavam dessacralizar um objeto adorado. Afinal,
a adoração por aqueles objetos, deuses, manuscritos e estátuas em
nada se assemelhava aos cultos ocidentais. Não era um culto a
relíquias que aludia simbolicamente a uma totalidade a quem se devia
submissão. Os objetos não eram somente a parte de um todo. Eram a
própria totalidade e não pertenciam, como posse, a nenhuma
divindade. Não eram as mãos que os haviam tocado ou utilizado que
os sacralizavam; era o seu pertencimento à natureza, à terra e ao
cosmo, o que em tudo os tornava diferentes dos outros
objetos-relicários. John também sabia que não poderia vender a
pedra, porque atribuir um valor a um objeto como aquele era, segundo
os hindus, condenar-se ao inferno eterno, pois nisso também os
hindus acreditam, embora o inferno hindu seja em tudo diferente do
dantesco, cercado de pequenos diabos armados de tridentes e ocupado
por fogueiras. John também não tinha por que pensar em lucrar
alguma coisa com a pedra; vivia confortavelmente e tinha se
desiludido das glórias adquiridas com a venda de objetos sagrados
para museus ingleses. Afinal, havia mais objetos hindus no British
Museum do que poderia comportar a Índia inteira, se nela pudessem
ser dispostos os objetos encontrados até então. A pedra tinha
formato ovalado e numa de suas faces havia um rosto pintado que
sorria, enquanto na outra face da pedra o mesmo rosto tinha os lábios
voltados para baixo, em sinal de submissão. Nas laterais da pedra
havia faixas pretas e amarelas e, no canto inferior da face em que se
via o rosto que sorria, podia ser lida a seguinte inscrição
assinada por Purana: “Nenhuma shila do local das shalagramas nunca
poderá ser não auspiciosa mesmo que rachada, riscada, partida ou
até mesmo quebrada”. Aquela shila em particular continha uma
pequena rachadura, mas, como dizia a própria inscrição, não havia
com que se preocupar. John Marshall lembrava-se de já ter lido
aquela mesma inscrição em outro lugar; era uma frase aparentemente
sem importância, mas algo nela o incomodava. Deixou a shila
preservada no mesmo local onde a encontrara, pois ainda não decidira
o que fazer com ela, e não tinha coragem de tocá-la. Retornou ao
hotel. À noite, num de seus sonhos em que misturava línguas, o
hindu, o egípcio e o nepalês, além, é claro, do inglês e do
dialeto irlandês de seus pais, sonhou com algumas palavras, que
anotou imediatamente: “salagram namito’ham martyair”. Caminhou
durante todo o dia seguinte pelas escavações do vale de Mohenjo
Daro, com aquelas palavras em sua cabeça. Onde já as tinha lido? Ao
lado da shalagrama que havia deixado guardada no dia anterior,
Marshall percebeu, jogado ao acaso, um dado védico, um resto de
marfim quebrado, em cujas faces ainda se podiam ver alguns traços de
letras sagradas. Lembrou-se finalmente da origem daquelas palavras,
que vira gravadas na shila, com as quais sonhara e que se recordava
de ter visto inscritas num dos dados que possuía em casa, amontoados
ao acaso, como cabe fazer com os dados, numa das vitrines que havia
mandado fabricar especialmente para guardar seus objetos. John
cultivava uma predileção estranha e descabida por aqueles pequenos
objetos sagrados e profanos, porque, mesmo representando uma
atividade proibida e vã, o jogo, ainda mantinham alguma relação
incerta e única com as divindades. Marshall tinha aprendido que o
acaso contido nos dados muitas vezes se encontrava mais próximo dos
deuses do que os próprios Vedas ou até os seres que dedicavam sua
vida ao sacrifício, abstendo-se dos prazeres mundanos, como o jogo,
por exemplo. Sabia que o acaso, sua insubmissão ao destino, era
também uma forma de lei não científica, mas atomística, cósmica,
que regia as criaturas de maneira harmoniosa e poética, pela atração
que as moléculas sabiam exercer umas sobre as outras. Marshall amava
o acaso e via nos dados, especialmente os hindus, com suas inscrições
religiosas, uma espécie de síntese de seu trabalho, que misturava
fé e razão. Eram objetos tão bem construídos, tão
matematicamente servis à sorte e carregados simultaneamente das
histórias sacra e profana. Pensou em sua estante de dados e
lembrou-se do dado específico onde havia essa inscrição. Era um
dado feito de osso, de um branco amarelado, inteiramente rachado, com
uma das faces totalmente apagada. No lugar de números, ou pontos,
como costumava encontrar nos outros dados, havia letras e pequenas
inscrições embaixo de cada uma delas. Eram o am,
o jha,
o ba,
o ha
e o tha,
todos escritos no alfabeto devanágari. John percebeu que o lado em
que faltava uma letra era justamente aquele em que se encontrava
aquela inscrição com a qual sonhara. Olhou para a shila, pensou na
inscrição que habitava tanto a pedra intocável quanto o dado todo
gasto que possuía em seu armário e decidiu que, assim que chegasse
em casa, inscreveria ele mesmo no dado a letra da.
Percebeu que a inscrição referente às rachaduras, que dizia que
mesmo a shila rachada não traria má sorte, entrava em estranha
comunhão com o destino simples e mundano do dado e que a letra da,
do hindu, representava perfeitamente a sensação que,
instantaneamente, o retirava de sua melancolia e o encaminhava de
volta a um sentido primordial de seu trabalho. Era a letra inicial de
davaiana,
cuja pobre tradução para o inglês era “encantamento”,
“maravilhamento” — a totalidade do sonho, do acaso e do divino,
a tradução da vizinhança entre a shila e o dado. Lembrou-se também
de que na sua língua, o inglês, ainda não havia uma palavra para
designar aquele objeto que lhe provocara aquela estranha potência de
vida, tampouco uma letra para designá-lo. Em homenagem a davaiana, à
letra da,
do hindu, e ao alfabeto devanágari, Marshall inventou então a letra
D, que imediatamente foi adotada para nomear aquele objeto como dado,
assim como para designar o sentimento da divina dualidade, que
governava a vida de John e governa a todos nós até os dias de hoje
e para sempre.
Noemi
Jaffe,
in
A
verdadeira história do alfabeto
Nenhum comentário:
Postar um comentário