quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

A desintegração

Dentre todos aqueles que não perderam sua ingenuidade, ninguém é infeliz. Aqueles que viveram e continuam a viver presos à existência, não por imbecilidade, mas por um amor instintivo ao mundo - estes atingem a harmonia, uma tal integração à vida que aqueles que assombram as extremidades do desespero não podem fazer mais do que invejar. A desintegração corresponde a uma perda total da ingenuidade, este maravilhoso dom destruído pelo conhecimento, pois a desintegração é inimiga declarada da vida. O arrebatamento frente ao charme espontâneo do ser, a experiência inconsciente das contradições, que perdem implicitamente o que têm de trágico - são expressões da inocência, terreno fértil para o amor e para o entusiasmo. Não experimentar as contradições de forma dolorosa, isto é atingir a alegria virginal da inocência, permanecer fechado à tragédia e ao sentimento da morte. A ingenuidade é opaca ao trágico, mas aberta ao amor, pois o ingênuo - não consumido por contradições internas - possui os recursos necessários para aí se consagrar. Para o desintegrado, enquanto isto, o trágico adquire uma intensidade extremamente penosa, pois as contradições não sobrevém somente a si mesmo, mas também a tudo o que há entre ele e o mundo. Frente ao trágico, não existem mais do que duas atitudes fundamentais: a ingênua e a heroica; todas as outras não fazem mais do que diversificar as nuances. Eis a única escolha possível se não se quer sucumbir à imbecilidade. Desta forma, a ingenuidade sendo, para o homem confrontado por tal alternativa, um bem perdido, impossível de ser reconquistado, somente resta o heroísmo. A atitude heroica é o privilégio e a danação dos desintegrados, dos suspensos, dos abandonados à própria sorte pela felicidade e pela satisfação. Ser um herói - no sentido mais universal da palavra - significa desejar um triunfo absoluto, que apenas se pode obter pela morte. Todo heroísmo transcende a vida, implicando fatalmente um salto no nada. Todo heroísmo é então um heroísmo do nada, ainda que o herói não tenha consciência e não se dê conta de que seu ímpeto procede de uma vida privada de seus motores habituais. Tudo aquilo que não nasce da ingenuidade
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

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