Assisti,
por acaso, a um documentário sobre os universos paralelos. A
hipótese de sua existência deriva da física quântica e aponta
para a Teoria dos Muitos Mundos. Impressionou-me, em particular, a
conjetura de que vivemos em um vasto campo de universos-bolhas, que
flutuam em um grande vazio. Por motivos fúteis e incongruentes, eles
se chocam e se fundem. A vida seria só um suspiro. De acordo com
essa hipótese, habitamos um grande celeiro de universos – tese que
desmente a própria noção de universo, que se refere ao Um.
Larguei
sobre o tapete meu exemplar de Sementes aladas, antologia
poética de Percy Bysshe Shelley (Ateliê Editorial, apresentação e
tradução de Alberto Marsicano e John Milton). Avançava com prazer,
mas com dificuldades, nos versos de Shelley. Quando voltei à
leitura, ainda atordoado pela visão dos muitos universos, já não
era o mesmo. A hipótese da existência de mundos paralelos surgiu em
meados do século XX. Os artistas caminham, porém, à frente da
ciência: dois séculos antes, de uma forma sutil e comovente,
Shelley a antecipava. Os universos não passam de sementes com asas.
Navegam pela escuridão e, em breves clarões, disseminam a vida. E –
o mais aterrador – isso é tudo.
Era
garoto quando, em uma velha enciclopédia, descobri as telas de
William Turner (1775-1851), o pintor inglês contemporâneo de
Shelley. As luzes sutis de seus quadros, que emergem de profundezas
inacessíveis, ainda hoje me cegam. Como esquecer as bandas de luz
que, como facadas, perfuram o mar de “O naufrágio”? Elas
estabelecem uma conexão inesperada entre a banalidade do real e o
desconhecido. Não é preciso descer às profundezas para chegar ao
estranho. Basta ler, com paciência, a lousa da superfície. Que mais
fizeram os românticos senão repetir que pisamos um abismo? Que, nas
entrelinhas de nossa vida banal, outros universos, paralelos e
secretos, nos vigiam e chamam?
Não
é de outra coisa senão desse deslocamento, mundos jogados para além
do mundo, que Shelley trata. Em “Mutabilidade”, ele resume:
“Somos qual nuvens que velam a lua à meia-noite”. Diz ainda:
“Qual liras esquecidas cujas cordas dissonantes/ A cada sopro dão
respostas variadas”. Na mais plácida paisagem, no que parece mais
sólido e imóvel, o movimento dá as cartas. Nosso planeta gira
veloz pelo cosmos, mas, esquecidos disso, nos deitamos tranquilos à
beira do mar e dormimos. O grande tema dos românticos é o
esquecimento. Eles parecem nostálgicos, com seu apego excessivo ao
passado; parecem sonhadores incorrigíveis. Contudo, é nos destroços
e nas fissuras do mundo que leem a verdade do presente. É ali,
ainda, que esboçam o futuro.
Em
“Julian e Maddalo: uma conversação”, Shelley resume a atitude
romântica. Julian escolta o conde Maddalo em uma cavalgada entre as
dunas. Atravessam um litoral desolado, que os leva a acreditar “que
aquilo que enxergamos é sem limites”. A acreditar ou aceitar? As
ideias – como os universos-bolhas, que vagam pelo abismo –
flutuam e escapam. Quem pensa não tem garantias: a única garantia
seria não pensar, mas quem consegue? “O ligeiro pensamento alado
de risos não se fixava”, ele escreve. Por fim, desmontam seus
cavalos e embarcam em uma gôndola. Em meio à tempestade, navegam
para uma ilha que abriga um manicômio.
Chegam,
então, a um mundo paralelo e gritante. O universo em desordem dos
que, na aparência, perderam o eixo e se cegaram. Uma pergunta se
impõe: estarão cegos ou veem demais? Fogem da realidade ou a ela se
agarram? “Mãos torturadas batiam palmas,/ Gritos ferozes, uivos e
lamentos viscerais/ (...)/ Gemidos, guinchos, palavrões e preces
blasfemas”. Em meio à desordem, os dois visitantes ouvem uma
melodia. Julian considera: “Penso que haveria/ Um remédio para
eles, com paciência e carinho,/ Se a música pode assim comovê-los”.
Chegamos ao coração do Romantismo, com sua aposta na evasão, seu
culto à estabilidade do passado, seu apego às emoções. Rememoro
as telas de Turner: em meio às tormentas, não a luz sábia e
sedenta dos iluministas, mas a luz branda e opaca dos que resistem.
Lembram
os tradutores de Sementes
aladas que, em seu último poema, “O triunfo da vida”,
escrito em 1882, Shelley separa a vida do humano. O humano ordena a
existência, se esforça para reter e acolher, e sempre insiste em
dar nomes. A vida, ao contrário, é incerta e caótica, não tem
interesse pelas palavras e se parece, mais, com uma guerra. O triunfo
da vida – com suas formas paralelas e seus eventos incoerentes –
nos dá, por fim, a última chance de autorreconhecimento. Não é
fácil se reconhecer em um espelho partido, que nos devolve imagens
incoerentes e que nos reparte em outras existências. Não é fácil,
mas é isso. O que mais seria?
A
poesia de Shelley se baseia na aceitação dessa dor e dessa
inconstância. A instabilidade, enfim, não como condenação, mas
como cura. É preciso aceitar a vida que se desmente e flutua, só
isso nos centra. Aceitar-se como alguém que está além de si. Está
em “Ozymandias”: “Nada além permanece. Ao redor do
desolamento/ Da ruína colossal, infinitas e desertas/ As areias
planas e solitárias se estendem ao vento”. Pensamos, em geral, que
a ruína remete à morte. Volto à tese dos universos-bolhas: quando
dois mundos se chocam, em vez da morte, acontece o nascimento de um
terceiro. A vida sexual talvez seja o exemplo mais banal disso.
Shelley
– que tinha na navegação seu passatempo favorito – prenuncia,
ainda, os atuais navegadores da web. Não mais um mar que se desdobra
em ondas, mas em “janelas”. Não mais o terror dos raios, mas a
pressão dos hackers e dos vírus. Sempre as ameaças, o que fazer? O
poeta morreu em um naufrágio, durante uma viagem a Livorno. Seu
cadáver foi achado em uma praia. A morte de Shelley encena o caráter
cósmico de sua poesia. Foi um homem corajoso. Na aridez da
realidade, soube ver a grandeza da vida. Ver, aceitar e dela fazer
uma escrita.
Volto
a ler seus versos. Neles reencontro, para roubar as palavras do
poeta, “aquela luz cujo sorriso o Universo aclara/ aquela Beleza na
qual tudo opera e movimenta”. O que mais posso querer?
José
Castello, in Sábados inquietos
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