sábado, 24 de novembro de 2018

Versos de vento

Assisti, por acaso, a um documentário sobre os universos paralelos. A hipótese de sua existência deriva da física quântica e aponta para a Teoria dos Muitos Mundos. Impressionou-me, em particular, a conjetura de que vivemos em um vasto campo de universos-bolhas, que flutuam em um grande vazio. Por motivos fúteis e incongruentes, eles se chocam e se fundem. A vida seria só um suspiro. De acordo com essa hipótese, habitamos um grande celeiro de universos – tese que desmente a própria noção de universo, que se refere ao Um.
Larguei sobre o tapete meu exemplar de Sementes aladas, antologia poética de Percy Bysshe Shelley (Ateliê Editorial, apresentação e tradução de Alberto Marsicano e John Milton). Avançava com prazer, mas com dificuldades, nos versos de Shelley. Quando voltei à leitura, ainda atordoado pela visão dos muitos universos, já não era o mesmo. A hipótese da existência de mundos paralelos surgiu em meados do século XX. Os artistas caminham, porém, à frente da ciência: dois séculos antes, de uma forma sutil e comovente, Shelley a antecipava. Os universos não passam de sementes com asas. Navegam pela escuridão e, em breves clarões, disseminam a vida. E – o mais aterrador – isso é tudo.
Era garoto quando, em uma velha enciclopédia, descobri as telas de William Turner (1775-1851), o pintor inglês contemporâneo de Shelley. As luzes sutis de seus quadros, que emergem de profundezas inacessíveis, ainda hoje me cegam. Como esquecer as bandas de luz que, como facadas, perfuram o mar de “O naufrágio”? Elas estabelecem uma conexão inesperada entre a banalidade do real e o desconhecido. Não é preciso descer às profundezas para chegar ao estranho. Basta ler, com paciência, a lousa da superfície. Que mais fizeram os românticos senão repetir que pisamos um abismo? Que, nas entrelinhas de nossa vida banal, outros universos, paralelos e secretos, nos vigiam e chamam?
Não é de outra coisa senão desse deslocamento, mundos jogados para além do mundo, que Shelley trata. Em “Mutabilidade”, ele resume: “Somos qual nuvens que velam a lua à meia-noite”. Diz ainda: “Qual liras esquecidas cujas cordas dissonantes/ A cada sopro dão respostas variadas”. Na mais plácida paisagem, no que parece mais sólido e imóvel, o movimento dá as cartas. Nosso planeta gira veloz pelo cosmos, mas, esquecidos disso, nos deitamos tranquilos à beira do mar e dormimos. O grande tema dos românticos é o esquecimento. Eles parecem nostálgicos, com seu apego excessivo ao passado; parecem sonhadores incorrigíveis. Contudo, é nos destroços e nas fissuras do mundo que leem a verdade do presente. É ali, ainda, que esboçam o futuro.
Em “Julian e Maddalo: uma conversação”, Shelley resume a atitude romântica. Julian escolta o conde Maddalo em uma cavalgada entre as dunas. Atravessam um litoral desolado, que os leva a acreditar “que aquilo que enxergamos é sem limites”. A acreditar ou aceitar? As ideias – como os universos-bolhas, que vagam pelo abismo – flutuam e escapam. Quem pensa não tem garantias: a única garantia seria não pensar, mas quem consegue? “O ligeiro pensamento alado de risos não se fixava”, ele escreve. Por fim, desmontam seus cavalos e embarcam em uma gôndola. Em meio à tempestade, navegam para uma ilha que abriga um manicômio.
Chegam, então, a um mundo paralelo e gritante. O universo em desordem dos que, na aparência, perderam o eixo e se cegaram. Uma pergunta se impõe: estarão cegos ou veem demais? Fogem da realidade ou a ela se agarram? “Mãos torturadas batiam palmas,/ Gritos ferozes, uivos e lamentos viscerais/ (...)/ Gemidos, guinchos, palavrões e preces blasfemas”. Em meio à desordem, os dois visitantes ouvem uma melodia. Julian considera: “Penso que haveria/ Um remédio para eles, com paciência e carinho,/ Se a música pode assim comovê-los”. Chegamos ao coração do Romantismo, com sua aposta na evasão, seu culto à estabilidade do passado, seu apego às emoções. Rememoro as telas de Turner: em meio às tormentas, não a luz sábia e sedenta dos iluministas, mas a luz branda e opaca dos que resistem.
Lembram os tradutores de Sementes aladas que, em seu último poema, “O triunfo da vida”, escrito em 1882, Shelley separa a vida do humano. O humano ordena a existência, se esforça para reter e acolher, e sempre insiste em dar nomes. A vida, ao contrário, é incerta e caótica, não tem interesse pelas palavras e se parece, mais, com uma guerra. O triunfo da vida – com suas formas paralelas e seus eventos incoerentes – nos dá, por fim, a última chance de autorreconhecimento. Não é fácil se reconhecer em um espelho partido, que nos devolve imagens incoerentes e que nos reparte em outras existências. Não é fácil, mas é isso. O que mais seria?
A poesia de Shelley se baseia na aceitação dessa dor e dessa inconstância. A instabilidade, enfim, não como condenação, mas como cura. É preciso aceitar a vida que se desmente e flutua, só isso nos centra. Aceitar-se como alguém que está além de si. Está em “Ozymandias”: “Nada além permanece. Ao redor do desolamento/ Da ruína colossal, infinitas e desertas/ As areias planas e solitárias se estendem ao vento”. Pensamos, em geral, que a ruína remete à morte. Volto à tese dos universos-bolhas: quando dois mundos se chocam, em vez da morte, acontece o nascimento de um terceiro. A vida sexual talvez seja o exemplo mais banal disso.
Shelley – que tinha na navegação seu passatempo favorito – prenuncia, ainda, os atuais navegadores da web. Não mais um mar que se desdobra em ondas, mas em “janelas”. Não mais o terror dos raios, mas a pressão dos hackers e dos vírus. Sempre as ameaças, o que fazer? O poeta morreu em um naufrágio, durante uma viagem a Livorno. Seu cadáver foi achado em uma praia. A morte de Shelley encena o caráter cósmico de sua poesia. Foi um homem corajoso. Na aridez da realidade, soube ver a grandeza da vida. Ver, aceitar e dela fazer uma escrita.
Volto a ler seus versos. Neles reencontro, para roubar as palavras do poeta, “aquela luz cujo sorriso o Universo aclara/ aquela Beleza na qual tudo opera e movimenta”. O que mais posso querer?
José Castello, in Sábados inquietos

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