Tudo
isso acontece no ano este que passa e só acabarei esta história
difícil quando eu ficar exausto da luta, não sou um desertor. Às
vezes lembrava-se de uma assustadora canção desafinada de meninas
brincando de roda de mãos dadas – ela só ouvia sem participar
porque a tia a queria para varrer o chão. As meninas de cabelos
ondulados com laços de fita cor-de-rosa. “Quero uma de vossas
filhas de marré-marré-deci”. “Escolhei a qual quiser marré”.
A música era um fantasma pálido como uma rosa que é louca de
beleza mas mortal: pálida e mortal a moça era hoje o fantasma suave
e terrificante de uma infância sem bola nem boneca. Então costumava
fingir que corria pelos corredores de boneca na mão atrás de uma
bola e rindo muito a gargalhada era aterrorizadora porque acontecia
no passado e só a imaginação maléfica a trazia para o presente,
saudade do que poderia ter sido e não foi. (Eu bem avisei que era
literatura de cordel, embora eu me recuse a ter qualquer piedade).
Devo dizer que essa moça não tem consciência de mim, se tivesse
teria para quem rezar e seria a salvação. Mas eu tenho plena
consciência dela: através dessa jovem dou o meu grito de horror à
vida. À vida que tanto amo.
Volto
à moça: o luxo que se dava era tomar um gole de café frio antes de
dormir. Pagava o luxo tendo azia ao acordar. Ela era calada (por não
ter o que dizer) mas gostava de ruídos. Eram vida. Enquanto o
silêncio da noite assustava: parecia que estava prestes a dizer uma
palavra fatal. Durante a noite na rua do Acre era raro passar um
carro, quanto mais buzinassem, melhor para ela. Além desses medos,
como se não bastassem, tinha medo grande de pegar doença ruim lá
embaixo dela – isso, a tia lhe ensinara. Embora os seus pequenos
óvulos tão murchos. Tão, tão. Mas vivia em tanta mesmice que de
noite não se lembrava do que acontecera de manha. Vagamente pensava
de muito longe e sem palavras o seguinte: já que sou, o jeito é
ser. Os galos de que falai avisavam mais um repetido dia de cansaço.
Cantavam o cansaço. E as galinhas, que faziam elas? Indagava-se a
moça. Os galos pelo menos cantavam. Por falar em galinha, a moça às
vezes comia num botequim um ovo duro. Mas a tia lhe ensinara que
comer ovo fazia mal para o fígado. Sendo assim, obediente adoecia,
sentindo dores do lado esquerdo oposto ao fígado. Pois era muito
impressionável e acreditava em tudo o que existia e no que não
existia também. Mas não sabia enfeitar a realidade. Para ela a
realidade era demais para ser acreditada. Aliás a palavra
“realidade” não lhe dizia nada. Nem a mim, por Deus. Quando
dormia quase que sonhava que a tia lhe batia na cabeça. Ou sonhava
estranhamente em sexo, ela que de aparência era assexuada. Quando
acordava se sentia culpada sem saber por quê, talvez porque o que é
bom devia ser proibido. Culpada e contente. Por via das dúvidas se
sentia de propósito culpada e rezava mecanicamente três ave-marias,
amém, amém, amém. Rezava mas sem Deus, ela não sabia quem era Ele
e portanto Ele não existia. Acabo de descobrir que para ela, fora
Deus, também a realidade era muito pouco. Dava-se melhor com um
irreal cotidiano, vivia em câmara leeeenta, lebre puuuuulando no
aaar sobre os ooooouteiros, o vago era o seu mundo terrestre, o vago
era o de dentro da natureza. E achava bom ficar triste. Não
desesperada, pois isso nunca ficara já que era tão modesta e
simples mas aquela coisa indefinível como se ela fosse romântica.
Claro que era neurótica, não há sequer necessidade de dizer. Era
uma neurose que a sustentava, meu Deus, pelo menos isso: muletas. Vez
por outra ia para a Zona Sul e ficava olhando as vitrines faiscantes
de joias e roupas acetinadas – só para se mortificar um pouco. É
que ela sentia falta de encontrar-se consigo mesma e sofrer um pouco
é um encontro.
Domingo
ela acordava mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada.
O
pior momento de sua vida era nesse dia ao fim da tarde: caía em
meditação inquieta, o vazio do seco domingo. Suspirava. Tinha
saudade de quando era pequena – farofa seca – e pensava que fora
feliz. Na verdade por pior a infância é sempre encantada, que
susto. Nunca se queixava de nada, sabia que as coisas são assim
mesmo e – quem organizou a terra dos homens? Na certa mereceria um
dia o céu dos oblíquos onde só entra quem é torto. Aliás não é
entrar no céu, é oblíquo na terra mesmo. Juro que nada posso fazer
por ela. Afianço-vos que se eu pudesse melhoraria as coisas. Eu bem
sei que dizer que a datilógrafa tem o corpo cariado é um dizer de
brutalidade pior que qualquer palavrão.
Clarice
Lispector, in A hora da estrela
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