Feito
febre, baixava às vezes nele aquela sensação de que nada daria
jamais certo, que todos os esforços seriam para sempre inúteis, e
coisa nenhuma de alguma forma se modificaria. Mais que sensação,
densa certeza viscosa impedindo qualquer movimento em direção à
luz. E além da certeza, a premonição de um futuro onde não
haveria o menor esboço de uma espécie qualquer não sabia se de
esperança, fé, alegria, mas certamente qualquer coisa assim.
Eram
dias parados, aqueles. Por mais que se movimentasse em gestos
cotidianos - acordar, comer, caminhar, dormir, dentro dele algo
permanecia imóvel. Como se seu corpo fosse apenas a moldura do
desenho de um rosto apoiado sobre uma das mãos, olhos fixos na
distância. Ausentou-se, diriam ao vê-lo, se o vissem. E não seria
verdade. Nesses dias, estava presente como nunca, tão pleno e perto
que estava dentro do que chamaria - tivesse palavras, mas não as
tinha ou não queria tê-las - vaga e precisamente de: A Grande
Falta.
Era
translúcida e gelada. Tivesse olhos, seriam certamente verdes, com
remotas pupilas. À beira da praia certa vez encontrara um caco de
garrafa tão burilado pelas ondas, areias e ventos que cintilava ao
sol, pequena joia vadia. Apertou-o entre os dedos, sentindo um frio
anestésico que o impedia de perceber as gotas de sangue brotando
mornas da palma da mão. Era assim A Grande Falta.
Pudessem
vê-lo, pudesse ver-se, veriam também o sangue, ele e os outros.
Acontece que tornava-se invisível nesses dias. Olhando-se ao
espelho, sabia de imediato que estava dentro Dela. No vidro, além
dele mesmo, localizava apenas um claro reflexo esverdeado.
Ela
estava tão dentro dele quanto ele dentro Dela. Intrincados, a ponto
de um tornar-se ao mesmo tempo fundo e superfície do outro.
Amenizava-se às vezes no decorrer do dia, nuvens que se dissipam,
turvo de água clareando até o cair da noite surpreendê-lo nítido,
passado a limpo, passado a ferro. Então sorria, dava telefonemas,
cantava ou ia ao cinema. Mas em outras vezes adensava-se feito céu
cada vez mais escuro, turvo agitado subindo do fundo, vidro bafejado.
Sem dormir, fosforescia entre os lençóis ouvindo os ruídos da
madrugada chegarem como abafados por uma grossa camada de algodão.
Dissipava-se ou concentrava-se na manhã seguinte e, concentrando-se,
não era uma manhã seguinte, mas apenas uma fluida e mansa
continuação sem solavancos.
Seu
maior medo era o destemor que sentia. Íntegro, sem mágoas nem
carências ou expectativas.
Inteiro,
sem memórias nem fantasias. Mesmo o não-medo sequer sentia, pois
não-dar-certo era o natural das coisas serem, imodificáveis,
irredutíveis a qualquer tipo de esforço. Fosse íntimo das águas
ou dos ares, teria quem sabe parâmetros para compreender esse quieto
deslizar de peixe, ave.
Criatura
da terra, seu temor era quem sabe perder o apoio dos pés. E criatura
do fogo, A Grande Falta crepitava em chamas dentro dele.
Sua
invisibilidade no entanto não o invisibilizava: encadernava-o
meticulosa em um determinado corpo e uma voz particular e uns gestos
habituais e alguns trejeitos pessoais que, aparentemente, eram ele
mesmo. Por isso não é verdade que não o veriam. Veriam e viam,
sim, aquela casca reproduzindo com perfeição o externo dele. Tão
perfeito que nem ao menos provocava suspeitas aumentando as pausas
entre as palavras, demorando o olhar, ralentando o passo daquele
falso corpo.
Atrás
da casca, porém, o cristal incandescia. Debaixo da terra, fogo-fátuo
soterrado tão profundamente que a pele nem reluzia.
Alguma
coisa que jamais teria, e tão consciente estava dessa para sempre
ausência que, por paradoxal que pareça, era completo nesse estado
de carência plena. Isso acontecia apenas quando dentro Dela, pois ao
desembarcar, em vez de sorrir ou fazer coisas, frequentemente
limitava-se a chorar penoso como se apenas a dor fosse capaz de
devolvê-lo ao estágio anterior. A dor desconsolada e inconsolável,
em soluços que o sacudiam cada vez mais fortemente, a cada um deles
partindo-se a casca, quebrando-se a moldura, rachando-se o vidro,
apagando-se o fogo.
Como
uma outra espécie de felicidade, esse desembaraçar-se de uma também
felicidade. Emerso, chafurdava em emoções: tinha desejos violentos,
pequenas gulas, urgências perigosas, enternecimentos melados, ódios
virulentos, tesões insaciáveis. Ouvia canções lamurientas, bebia
para despertar fantasmas distraídos, relia ou escrevia cartas
apaixonadas, transbordantes de rosas e abismos. Exausto, então,
afogava-se num sono por vezes sem sonhos, por vezes - quando o ensaio
geral das emoções artificialmente provocadas (mas que um dia, em
outro plano, aquele da terra onde, supunha, gostava de pisar,
aconteceriam realmente) não era suficiente - povoado com répteis
frios, a tentar enlaçá-lo com tentáculos pegajosos e verdes olhos
de pupilas verticais.
Não
saberia dizer com certeza como nem quando aconteceu. Mas um dia - um
certo dia, um dia qualquer, um dia banal - deu-se conta que. Não,
realmente não saberia dizer ao menos do que dera-se conta. Mas foi
assim: olhando-se ao espelho, pela manhã, percebeu o claro reflexo
esverdeado.
Está
de volta, pensou. E no mesmo instante, tão imediatamente seguinte
que confundiu-se com o anterior, cantava, novamente ele mesmo. No
segundo verso, pequena contração, tinha novamente entre os dedos o
caco de vidro luminoso. Mas antes que a mão sangrasse, havia
preparado um drinque, embora fosse de manhã, e bebia lento, todo
intenso. Antes de engolir o líquido, seu corpo ganhou vértices
súbitos, emoldurando o desenho de um rosto apoiado sobre uma das
mãos abertas, olhos fixos na distância.
Foi
um dia movimentado, aquele. Sua casca partia-se e refazia-se,
entardecer sombrio e meio-dia cegante intercalados. Fumou demais, sem
terminar nenhum cigarro. Bebeu muitos cafés, deixando restos no
fundo das xícaras. Exaltou-se, ausentou-se. No intervalo da
ausência, distraía-se em chamá-la também, entre susto e fascínio,
de A Grande Indiferença, ou A Grande Ausência, ou A Grande Partida,
ou A Grande, ou A, ou. Na tentativa ou esperança, quem saberia, de
conseguindo nomeá-la conseguir também controlá-la.
Não
conseguiu. Desimportou-se com aquilo. Tomado a intervalos pelo
anônimo, atravessou a tarde, varou a noite, entrou madrugada adentro
para encontrar a manhã seguinte, e outra tarde, e outra noite ainda,
e nova madrugada, e assim por diante. Durante anos. Até as têmporas
ficarem grisalhas, até afundarem os sulcos em torno dos lábios.
Houvesse uma pausa, teria pedido ajuda, embora não soubesse ao certo
a quem nem como. Não houve. Mas porque as coisas são mesmo assim,
talvez por certa magia, predestinações, sinais ou simplesmente
acaso, quem saberá, ou ainda por ser natural que assim fosse, e
menos que natural, inevitável, fatalidade, trágicos encantos -
enfim, houve um dia, marco, em que o tocaram de leve no ombro.
Ele
olhou para o lado. Ao lado havia Outra Pessoa. A Outra Pessoa
olhava-o com cuidadosos olhos castanhos. Os cuidadosos olhos
castanhos eram mornos, levemente preocupados, um pouco expectantes.
As transformações tinham se tornado tão aceleradas que, no
primeiro momento, não soube dizer se a Outra Pessoa via a ele ou a
Ela, se se dirigia à moldura, à casca, ao cristal ou ao desenho, ao
corpo original, às gotas de sangue. Isso num primeiro momento. Num
segundo, teve certeza absoluta que se tinha desinvisibilizado. A
Outra Pessoa olhava para uma coisa que não era uma coisa, era ele
mesmo. Ele mesmo olhava para uma coisa que não era uma coisa, era
Outra Pessoa. O coração dele batia e batia, cheio de sangue.
Pousada sobre seu ombro, a mão da Outra Pessoa tinha veias cheias de
sangue, latejando suaves.
Alguma
coisa explodiu, partida em cacos. A partir de então, tudo ficou
ainda mais complicado. E mais real.
Caio
Fernando Abreu, in Morangos mofados
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