Ontem,
como acontece todos os anos em igual época, os garotos das ruas
excitaram-se no ardor de arrancar as tripas de um pobre boneco de
palha e trapo.
É
uma vingança tardia e inócua que a ralé toma periodicamente contra
um cidadão que há tempos se chamou Iehouda de Kerioth, vulgarmente
conhecido por Judas Iscariotes, homem de maus bofes, segundo a
tradição, apóstolo diletante, provavelmente traidor.
Provavelmente, digo eu, mas não exijo que ninguém dê crédito ao
que aqui fica, pois seria difícil apurar o grau de verdade que
existe nessa trapalhada de coisas antigas.
Possuímos
uma certa quantidade de noções que julgamos verdades inconcussas,
embora nunca tenhamos tomado a mais insignificante informação sobre
elas. Quem vai lá tocar em coisas antigas, cobertas de uma grossa
camada de mofo tradicional, polvilhadas da venerável poeira de
milênios? Ficaríamos assombrados se nos viessem dizer que elas
estão falhadas, rachadas, que há soluções de continuidade por
baixo da espessa crosta que as reveste.
Longe
de mim a ideia de defender o Iscariotes. Todos nós estamos
convencidos de que ele foi um tratante. Deixemo-lo tal qual está,
até que os esmerilhadores das pedras do Oriente nos venham
demonstrar que ele foi um ótimo rapaz.
Por
ora não vejo mal nenhum em que o consideremos o mais acabado
representante da infâmia. Se ele não foi tão mau como se diz,
naturalmente há de perdoar-nos a má opinião que temos a respeito
de sua pessoa. É possível que o nosso juízo sobre ele não esteja
muito distante da verdade.
Judas
suicidou-se, o que é motivo bastante para que o detestemos. O
suicida não está muito longe do assassino. A diferença que há
entre os dois é que o primeiro rouba a vida a uma pessoa e o segundo
pode fazer o mesmo a muitas. Questão de número apenas.
Continuemos,
pois, a dizer que Judas foi um patife. Não há nada de
extraordinário em semelhante julgamento. Mais difícil é admitir a
santidade de uma criatura. Os santos são raros, e o mundo está
cheio de malvados. Eu ficaria pasmo se entre os discípulos de Jesus
não houvesse aparecido nenhum birbante. Até me espanta que só um
tivesse aberto exceção à monótona bondade que naquelas almas
cândidas se encerrava. O que era razoável era surgirem pelo menos
quatro ou cinco traidores entre os companheiros do Mestre. Só houve
um, o que é lisonjeiro para a humanidade daqueles tempos remotos.
Se
o doce Jesus viesse hoje ao mundo, talvez não lhe fosse fácil
encontrar tantos espíritos fiéis. A proporção agora seria, pelo
menos, de cinquenta por cento de safados.
Quem
é santo nestes tempos prosaicos em que o dólar governa o mundo? As
consciências tornaram-se mercadoria vulgar. As almas vendem-se e
vendem-se caro.
Judas
hoje não se enforcaria. Já nenhum traidor se enforca. Trinta
dinheiros eram, talvez, uma quantia insignificante, capaz de levar um
homem ao desespero de passar uma corda ao pescoço. Atualmente é
possível obter somas tentadoras, que dão rendimentos consideráveis
a um traidor que se respeita.
Nenhum
Iscariotes se suicida. Se os contemporâneos seguissem o exemplo do
antigo, não haveria no mundo figueiras que bastassem para pendurar
tantos laços…
Graciliano
Ramos, in Garranchos
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