Estou
esperando. O quê? Uma coisa que ainda não aconteceu, é claro. Vou
confessar: estou emboscado. Se fosse antigamente, muito antigamente,
isso significaria que eu estava escondido num bosque, mas eu estou de
tocaia na casa do sujeito que vou matar.
Pensei
que a casa estivesse vazia e uma mulher apareceu e começou a gritar.
Pedi, por favor, não grite, não vou lhe fazer mal, mas ela abriu a
janela e passou a gritar com voz esganiçada, socorro, socorro,
socorro. O que eu podia fazer? Depois do terceiro socorro dei-lhe uma
pancada na cabeça com a coronha da pistola. Eu não mato mulher. É
uma decisão minha. Por isso eu não matei aquela megera, minha tia,
se é que era mesmo minha tia.
Depois
de limpar o sangue com uma toalha, coloquei-a cuidadosamente na cama,
a cabeça sobre o travesseiro, sua roupa bem-arrumada. Tirei os seus
sapatos. Eram sapatos finos, as solas novas, ela não devia andar
muito com aqueles sapatos. Quem seria aquela mulher, pensei, enquanto
a amarrava na cama com tiras dos lençóis que rasgara. Que relação
teria com o homem que eu ia matar? Ela não usava qualquer aliança,
na casa não havia qualquer retrato seu e pelas informações que me
haviam dado ninguém morava com ele, nem mulher, nem filhos. Não
parecia uma empregada doméstica, as roupas que usava eram caras,
suas unhas estavam bem-manicuradas, aquelas mãos não lavavam
panelas nem esfregavam chão, e no pulso ela exibia um Rolex de ouro
com luneta cravejada de diamantes. Abri sua boca e verifiquei que os
seus dentes eram perfeitos, não havia uma única cárie. Essa
constatação diminuiu, de certa maneira, um pouco do arrependimento
que eu sentia por ter agredido a mulher. Meus dentes são péssimos,
já arranquei vários, quando era pobre fui banguela, isto é, sem
vários dentes da frente, ria com a mão tapando a boca, mas depois
que arranjei esse emprego, vamos chamar assim esta minha atividade
remunerada, fiz implantes dentais e hoje gargalho com a boca aberta,
quer dizer, poderia gargalhar com a boca aberta se quisesse, mas não
quero, rio pouco, deve ser uma sequela do meu tempo de desdentado.
Minha
mãe morreu quando eu era criança e não conheci meu pai. Fui criado
por uma tia, ela dizia que era minha tia, mas eu desconfiava que era
mentira. Ela me botou para trabalhar com 11 anos e me obrigava a dar
o dinheiro para ela. Eu passava fome, comia um pão com café de
manhã e tomava uma sopa no almoço e outra sopa no jantar. Eu sabia
ler, e esse era o meu maior prazer, ou melhor, o meu único prazer.
Lia tudo que encontrava, e a única coisa que roubei, ou melhor, as
únicas coisas que roubei foram livros. Era fácil entrar numa
livraria e roubar um livro. Eu furtava um livro por dia e lia de
noite, deitado na cama. E a minha tia, ou lá o que fosse, me surrava
dizendo moleque burro, se vai roubar rouba alguma coisa que eu possa
vender. Ela batia com o que tivesse à mão, uma vez me espancou com
uma panela. Logo que foi possível fugi, eu devia ter uns 15 anos, e
fui morar na casa de uma velha corcunda e trôpega que eu ajudava a
atravessar a rua quase que diariamente. Contei a ela os meus
dissabores e ela disse vem morar comigo.
Minha
vida mudou. Passei a comer bem e a dormir numa cama decente. Ela
dizia que se tivesse dinheiro ia mandar consertar os meus dentes, mas
eu respondia que era feliz assim mesmo banguela. A gente sente o que
a gente quer sentir.
Sei
que ninguém é inocente, todo mundo cometeu alguma transgressão,
alguma maldade, ou crueldade; se eu fosse religioso diria cometeu
algum, ou vários, dos pecados capitais: avareza, gula, inveja, ira,
luxúria, orgulho e preguiça.
Voltando
ao meu trabalho atual. Quem era aquela mulher que eu fora obrigado a
agredir?
Fiquei
sentado na cama esperando ela acordar. Não demorou muito e a mulher
começou a gemer. Quando abriu os olhos e me viu, ela tentou se
levantar da cama e eu fiz a minha cara de mau, encostei o cano da
Glock no rosto dela e disse, rosnando, que lhe daria um tiro na boca
se ela não ficasse calada.
Fiz
uma nova inspeção na casa. Não havia um único livro, nem papéis,
nem molduras com retratos, apenas algumas roupas. Nem um telefone
fixo (para falar a verdade eu também não tenho, só uso o celular,
é fácil de jogar fora e comprar um novo). O meu alvo, vamos
chamá-lo assim, não devia residir naquele local. E se o contratante
tivesse se enganado? Isso era difícil, ele não se enganava nunca.
Uma coisa era certa: não era a residência da mulher.
Com
o meu celular tirei uma foto da mulher e várias da casa. Sempre faço
isso.
Verifiquei
se a minha Glock .40 estava pronta para ser usada, evidentemente com
o safety lock ativado para evitar disparos acidentais.
Estou
esperando. Saber esperar é uma virtude. Você não pode ficar
impaciente, nervoso, sôfrego, aflito, ansioso, isso pode foder com o
seu trabalho. Eu sempre fico calmo, não importa o tempo que tenha de
esperar.
A
campainha da porta tocou. Não me assustei, não disse que nunca me
assusto? Certamente não era quem eu queria, ele teria a chave da
porta. Eu não podia verificar pelo olho mágico, a sala onde eu
estava era muito clara, a pessoa que estava na porta, fosse ela quem
fosse, perceberia que o visor havia escurecido e que alguém estava
na casa.
Fiquei
quieto, olhando para a porta. A campainha tocou novamente. Continuei
sentado na poltrona da sala, olhando tranquilo para a porta com a
minha Glock na mão. Bocejei, mas creio que não foi um gesto
involuntário, eu estava me exibindo para mim mesmo. Faço muito
isso, me ajuda de uma maneira inexplicável, misteriosa.
Você
é aquilo que você quer ser. Assim como aquele italiano disse que as
coisas são para nós o que parecem ser e não o que são de verdade,
nós também somos o que a nossa imaginação diz que somos e não o
que somos na realidade, somos uma representação subjetiva da nossa
imaginação. Sei que isso parece complicado, mas não é. Por
exemplo: eu não quero ser infeliz e não sou; não quero ser covarde
e não sou; não quero ser ansioso e não sou. Repito: você é
aquilo que você quer ser, assim como você sente aquilo que quer
sentir.
A
campainha soou novamente.
Dei
outro bocejo. O que posso fazer? É uma pantomima? Não exatamente, é
uma forma de exprimir ideias e sentimentos por meio de gestos,
expressões faciais e corporais. O meu bocejo era uma forma de
mostrar enfado. Não é isso que devo sentir enquanto espero a
oportunidade de matar uma pessoa?
Voltei
para o quarto onde a mulher estava deitada. Sentei na beira da cama.
Quem
é você, perguntei.
Meu
nome é Sônia.
O
que você veio fazer aqui?
Vim
me encontrar com Davi, o meu namorado. Aqui é o lugar onde nos
encontramos.
Davi
era o nome do sujeito que eu devia matar.
Por
que neste lugar?
Davi
disse que aqui era menos perigoso.
Perigoso
por quê?
Não
sei, ele é que sabe.
Você
trabalha em quê?
Eu
não trabalho.
Então
é rica, para poder se vestir assim e exibir um relógio tão caro.
É
o Davi quem compra para mim.
Vocês
namoram há quanto tempo?
Desde
que a gente era criança. Sempre escondido, a minha família não
gostava dele e a família dele não gostava de mim.
Voltei
para a sala, sentei na poltrona e esperei.
Ouvi
o barulho da chave na porta.
Esperei
o visitante entrar.
Fecha
a porta, eu disse, apontando a Glock para ele.
Ele
fechou. Estava apavorado.
Sua
namorada está no quarto, deitada na cama. Fui obrigado a dar uma
coronhada na sua cabeça, estava gritando muito. Mas não é nada
grave. Outra coisa: é melhor você sumir, estão querendo matar
você. Desaparece o mais rápido possível, entendeu?
Ele
fez um gesto afirmativo com a cabeça.
Saí,
peguei o elevador. Fui andando calmamente pela rua.
Não
matei o cara e perdi uma boa grana. Mas ele era um anão. Anão
também não mato.
Rubem
Fonseca, in Amálgama
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