Pretendo,
como já insinuei, escrever de modo cada vez mais simples. Aliás o
material de que disponho é parco e singelo demais, as informações
sobre os personagens são poucas e não muito elucidativas,
informações essas que penosamente me vêm de mim para mim mesmo, é
trabalho de carpintaria.
Sim,
mas não esquecer que para escrever não-importa-o-quê o meu
material básico é palavra. Assim é que esta história será feita
de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido
secreto que ultrapassa palavras e frases. É claro que, como todo
escritor, tenho a tentação de usar termos suculentos: conheço
adjetivos esplendorosos, carnudo substantivos e verbos tão esguios
que atravessam agudos o ar em vias de ação, já que palavra é
ação, concordai? Mas não vou enfeitar a palavra pois se eu tocar
no pão da moça esse pão se tornará em ouro – e a jovem poderia
mordê-lo, morrendo de fome. Tenho então que falar simples para
captar a sua delicada e vaga existência. Limito-me a humildemente –
mas sem fazer estardalhaços de minha humildade que já não seria
humilde – limito-me a contar as fracas aventuras de uma moça numa
cidade toda feita contra ela. Ela que devia ter ficado no Sertão de
Alagoas com vestido de chita e sem nenhuma datilografia, já que
escrevia tão mal, só tinha até o terceiro ano primário. Por ser
ignorante era obrigada na datilografia a copiar lentamente letra por
letra – a tia é que lhe dera um curso ralo de como bater à
máquina. E a moça ganhara uma dignidade: era enfim datilógrafa.
Embora, ao que parece, não aprovasse na linguagem duas consoantes
juntas e copiava a letra linda e redonda do amado chefe a palavra
“designar” de modo como em língua falada diria: “desiguinar”.
Desculpai-me
mas vou continuar a falar de mim que sou meu desconhecido, e ao
escrever me surpreendo um pouco pois descobri que tenho um destino.
Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa?
Quem
antes afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir
vivendo à toa. Se tivesse a tolice de se perguntar “quem sou eu?”
Cairia estatelada em cheio no chão. É que “quem sou eu?”
Provoca
necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é
incompleto.
A
pessoa de quem vou falar é tão tola que às vezes sorri para os
outros na rua. Ninguém lhe responde ao sorriso porque nem ao menos a
olham.
Voltando
a mim: o que escreverei não pode ser absorvido por mentes que muito
exijam e ávidas de requintes. Pois o que estarei dizendo será
apenas nu. Embora tenha como pano de fundo – e agora mesmo – a
penumbra atormentada que sempre há nos meus sonhos quando de noite
atormentado durmo. Que não se esperem, então, estrelas no que se
segue: nada cintilará, trata-se de matéria opaca e por sua própria
natureza desprezível por todos. É que a esta história falta
melodia cantabile. O seu ritmo é às vezes descompasso. E tem fatos.
Apaixonei-me subitamente por fatos sem literatura – fatos são
pedras duras e agir está me interessando mais do que pensar, de
fatos não há como fugir.
Pergunto-me
se eu deveria caminhar à frente do tempo e esboçar logo um final.
Acontece porém que eu mesmo ainda não sei bem como isto terminará.
E também porque entendo que devo caminha passo a passo de acordo com
um prazo determinado por horas: até um bicho lida com o tempo. E
esta é também a minha mais primeira condição: a de caminhar
paulatinamente apesar da impaciência que tenho em relação a essa
moça.
Com
esta história eu vou me sensibilizar, e bem sei que cada dia é um
dia roubado da morte. Eu não sou um intelectual, escrevo com o
corpo. E o que escrevo é uma névoa úmida. As palavras são sons
transfundidos de sombras que se entrecruzam desiguais, estalactites,
renda, música transfigurada de órgão. Mal ouso clamar palavras a
essa rede vibrante e rica, mórbida e obscura tendo como contratom o
baixo grosso da dor. Alegro com brio. Tentarei tirar ouro do carvão.
Sei que estou adiando a história e que brinco de bola sem bola. O
fato é um ato? Juro que este livro é feito sem palavras. É uma
fotografia muda. Este livro é um silêncio. Este livro é uma
pergunta. Mas desconfio que toda essa conversa é feita apenas para
adiar a pobreza da história, pois estou com medo. Antes de ter
surgido na minha vida essa datilógrafa, eu era um homem até mesmo
um pouco contente, apesar do mau êxito na minha literatura. As
coisas estavam de algum modo tão boas que podiam se tornar muito
ruins porque o que amadurece plenamente pode apodrecer.
Clarice
Lispector, in A hora da estrela
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