domingo, 21 de outubro de 2018

Conto cruel

I
De repente, o leite talhou nos vasilhames. Foi um raio? Foi Leviatã? Foi o quê?
O burgomestre, debaixo das cobertas, resfolegava orações meio esquecidas.
E os negros monstros das cornijas, com as faces zebradas de relâmpagos, silenciosamente gargalhavam por suas três ou quatro bocas superpostas.

II
E amanheceu um enorme ovo, em pé, no meio da praça, três palmos mais alto que os formosos alabardeiros que lhe puseram em torno para evitar a aproximação do público. Foi chamado então o velho mágico, que escreveu na casca as três palavras infalíveis. E o ovo abriu-se ao meio e dele saiu um imponente senhor, tão magnificamente vestido e resplandecente de alamares e crachás que todos pensaram que fosse o Rei de Ouros. E ei-lo que disse, encarando o seu povo: Eu sou o novo burgomestre... Dito e leito.
Nunca houve tanta dança e tanta bebedeira na cidade. Quanto ao velho burgomestre, nem foi preciso depô-lo, pois desapareceu tão misteriosamente como havia aparecido o novo, ou o ovo. E os menestréis compuseram divertidas canções, que o populacho berrava nas estalagens, entre gargalhadas e arrepios de medo.

III
Mas por onde andaria o burgomestre?
O seu cachimbo de porcelana, em cujo forno se via um Cupido de pernas trançadas, tocando frauta, foi encontrado à beira-rio. E apesar de todos os esforços, só conseguiram pescar um baú, que não tinha nada a ver com a coisa, e uma sereiazinha insignificante e nada bonita, uma sereiazinha de água doce, que nem sabia cantar e foi logo devolvida ao seu elemento.
Mas quando casava a filha do mestre-escola, encontrou-se dentro do bolo de noiva a dentadura postiça do burgomestre, o que deu aso a que desmaiassem, no ato, duas gerações inteiras de senhoras, e ao posterior suicídio do pasteleiro.
E a caixa de rapé do burgomestre, que era inconfundível e única, multiplicou-se estranhamente e começou a ser achada em todas as salas de espera desertas, pelos varredores verdes de terror, depois que era encerrado o expediente nas repartições públicas e começava a ouvir-se, na rua, o passo trôpego do acendedor de lampiões.
Mário Quintana, in Sapato florido

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