I
De
repente, o leite talhou nos vasilhames. Foi um raio? Foi Leviatã?
Foi o quê?
O
burgomestre, debaixo das cobertas, resfolegava orações meio
esquecidas.
E
os negros monstros das cornijas, com as faces zebradas de relâmpagos,
silenciosamente gargalhavam por suas três ou quatro bocas
superpostas.
II
E
amanheceu um enorme ovo, em pé, no meio da praça, três palmos mais
alto que os formosos alabardeiros que lhe puseram em torno para
evitar a aproximação do público. Foi chamado então o velho
mágico, que escreveu na casca as três palavras infalíveis. E o ovo
abriu-se ao meio e dele saiu um imponente senhor, tão magnificamente
vestido e resplandecente de alamares e crachás que todos pensaram
que fosse o Rei de Ouros. E ei-lo que disse, encarando o seu povo: Eu
sou o novo burgomestre... Dito e leito.
Nunca
houve tanta dança e tanta bebedeira na cidade. Quanto ao velho
burgomestre, nem foi preciso depô-lo, pois desapareceu tão
misteriosamente como havia aparecido o novo, ou o ovo. E os
menestréis compuseram divertidas canções, que o populacho berrava
nas estalagens, entre gargalhadas e arrepios de medo.
III
Mas
por onde andaria o burgomestre?
O
seu cachimbo de porcelana, em cujo forno se via um Cupido de pernas
trançadas, tocando frauta, foi encontrado à beira-rio. E apesar de
todos os esforços, só conseguiram pescar um baú, que não tinha
nada a ver com a coisa, e uma sereiazinha insignificante e nada
bonita, uma sereiazinha de água doce, que nem sabia cantar e foi
logo devolvida ao seu elemento.
Mas
quando casava a filha do mestre-escola, encontrou-se dentro do bolo
de noiva a dentadura postiça do burgomestre, o que deu aso a que
desmaiassem, no ato, duas gerações inteiras de senhoras, e ao
posterior suicídio do pasteleiro.
E
a caixa de rapé do burgomestre, que era inconfundível e única,
multiplicou-se estranhamente e começou a ser achada em todas as
salas de espera desertas, pelos varredores verdes de terror, depois
que era encerrado o expediente nas repartições públicas e começava
a ouvir-se, na rua, o passo trôpego do acendedor de lampiões.
Mário
Quintana, in Sapato florido
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