Ao
acordar chamava-se Alba, Aurora ou Lúcia; à tarde Dagmar; à noite
Estela. Era alta, muito branca, não desse tom opaco e leitoso, tão
comum nas mulheres do norte da Europa, e sim de um leve alvor de
mármore, translúcido, sob o qual era possível seguir a impetuosa
correnteza do sangue. Já a receava antes de a ver. Ao vê-la perdi a
fala. Estendi-lhe a tremer o envelope dobrado ao meio em cujas costas
o meu pai escrevera, Para Madame Dagmar, naquela caligrafia de luxo
que fazia qualquer apontamento, por mais simples, inclusive uma
receita de sopa, parecer a ordem de um califa. Ela abriu-o, retirou
lá de dentro, com a ponta dos dedos, um pequeno cartão, e ao
deitar-lhe os olhos não foi capaz de conter o riso:
– Você
é virgem?!
Senti-me
desfalecer. Sim, eu completara dezoito anos, e nunca tivera uma
mulher. Dagmar conduziu-me pela mão através de um labirinto de
corredores e quando dei por isso estava, estávamos ambos, num quarto
enorme, assombrado
por graves espelhos. Então ela ergueu os braços sem nunca deixar de
sorrir e o vestido deslizou-lhe num murmúrio até aos pés:
– A
castidade é uma agonia inútil, garoto, eu corrijo-a com prazer.
Imaginei-a
com o meu pai na penumbra afogueada daquele mesmo quarto. Foi um
relâmpago, uma revelação, vi-a, multiplicada pelos espelhos,
soltar o vestido e libertar os seios, vi-lhe as ancas largas,
senti-lhe o calor do sangue quente, e vi o meu pai, vi as mãos
poderosas do meu pai. Ouvi a sua gargalhada de homem maduro a estalar
contra a pele dela, e a palavra chula. Vivi aquele exato instante,
milhares, milhões de vezes, com terror e com asco. Vivi-o até ao
último dos meus dias.
♦
Ocorre-me
às vezes um infeliz verso cujo autor não recordo. Provavelmente
sonhei-o. Será talvez o refrão de um fado, de um tango, de algum
velho samba que escutei em criança:
“O
pior pecado é não amar.”
Houve
muitas mulheres na minha vida mas receio não ter amado nenhuma. Não
com paixão. Não, talvez, como o exige a natureza. Penso nisto com
horror. A minha condição atual será – atormenta-se a suspeita –
um castigo irônico. Ou é isso, ou foi simples distração.
José
Eduardo Agualusa,
in O
vendedor de passado
Nenhum comentário:
Postar um comentário