segunda-feira, 15 de outubro de 2018

A ostaxa

Em relação à cena baleeira que em breve será relatada, assim como para um melhor entendimento de todas as cenas similares algures apresentadas, devo aqui falar da mágica e por vezes horrível ostaxa do arpão.
A ostaxa usada originalmente na pesca era feita do melhor cânhamo, levemente vaporizado com alcatrão, mas não totalmente impregnado, como as cordas comuns; pois conquanto o alcatrão, usado segundo o costume, faz o cânhamo mais flexível para o cordoeiro, e também torna a corda mais confortável para o marujo no uso diário do navio; no entanto, não só a quantidade comum tornaria a ostaxa do arpão demasiado rígida para o enrolamento estreito a que precisa ser submetida; mas, como a maior parte dos marinheiros está começando a entender, o alcatrão, em geral, de modo algum acrescenta durabilidade ou resistência à corda, por mais que lhe possa dar densidade e brilho.
Há alguns anos que a corda de manilha na pesca Norte-Americana substituiu quase por completo o cânhamo como material para as ostaxas de arpão; apesar de não ser tão durável quanto o cânhamo, é mais forte, e muito mais macia e elástica; e acrescentarei (já que há uma estética em todas as coisas) que é muito mais bonita e cai melhor ao navio do que o cânhamo. O cânhamo é um sujeito escuro, moreno, uma espécie de Índio, mas a manilha é como uma Circassiana de cabelos dourados, para ser vista.
A ostaxa do arpão tem apenas dois terços de polegada de espessura. À primeira vista, não parece tão forte quanto o é na realidade. A experiência mostra que cada um dos seus cinquenta e um fios aguenta um peso de cento e doze libras; de modo que a corda completa suporta uma carga equivalente a quase três toneladas. No comprimento, a ostaxa do arpão comum para a pesca de Cachalotes mede pouco mais de duzentas braças. Mais para a popa, fica enrolada em espiral na selha, não como a serpentina de um alambique, mas de modo a fazer como uma massa redonda, em forma de queijo, de “polias” densamente compactadas, ou camadas de espirais concêntricas, sem nenhum vazio exceto o “centro”, ou um tubo vertical minúsculo formado no eixo do queijo. Como a menor enroscadura ou emaranhamento na aducha, ao desenrolar da ostaxa, inevitavelmente arrancaria um braço, uma perna ou um corpo inteiro, usa-se a máxima precaução ao enrolar a ostaxa na selha. Alguns arpoadores passam quase uma manhã inteira nesse mister, fazendo a ostaxa subir e depois descer enlaçada através de um cepo até a selha, para durante o enrolamento evitar qualquer carquilha ou trançado.
Nos botes Ingleses são usadas duas selhas em vez de uma; sendo a mesma ostaxa continuamente enrolada em ambas. Há uma certa vantagem nisso; porque estas duas selhas gêmeas são tão pequenas que se acomodam nos botes com mais facilidade, e são menos pesadas; já a selha Norte-Americana, de quase três pés de diâmetro, e de profundidade proporcional, constitui uma carga volumosa para uma embarcação cujas tábuas têm apenas meia polegada de espessura; pois o fundo do bote baleeiro é como uma camada fina de gelo, que aguenta um peso considerável distribuído, mas não muito se concentrado. Quando a capa de lona pintada cobre a selha da ostaxa Norte-Americana, o bote parece estar levando um imenso bolo de casamento para as baleias.
Ambas as extremidades da ostaxa ficam expostas; a ponta inferior terminando numa alça ou anel que sobe do fundo pelo lado da selha e pende sobre sua borda, totalmente solta do resto. Essa disposição da ponta inferior é necessária por dois motivos. Primeiro: para facilitar que se amarre a ela uma ostaxa adicional de um bote próximo, no caso de a baleia atingida mergulhar tão fundo que ameace levar toda a ostaxa originalmente presa ao arpão. Nesses casos, a baleia é passada como uma caneca de cerveja, fosse esse o caso, de um bote a outro; embora o primeiro bote sempre fique por perto para ajudar o companheiro. Segundo: essa disposição é indispensável para a segurança de todos; pois se a ponta inferior da ostaxa estivesse de algum modo presa ao bote, e se a baleia fizesse a corda correr até o fim, num único minuto fugaz, como às vezes faz, não pararia aí, pois o bote condenado seria inevitavelmente arrastado junto a ela para baixo, para as profundezas do mar; e, nesse caso, nenhum pregoeiro público jamais poderia encontrá-lo de novo.
Antes de descer os botes para a caça, a ponta superior da ostaxa é retirada da selha, e, passando-a em volta do posto da arpoeira, puxam-na em direção à proa, por toda a extensão do bote, pousando-a através das forquetas ou chumaceiras de todos os remos, para que ela corra sob seus pulsos quando estão remando; e passam-na também por entre os homens, sentados alternadamente nas amuradas opostas, até os calços ou cunhas de chumbo na ponta extremamente aguda da proa, onde um pino ou um espeto de madeira, do tamanho de uma bobina comum, impede que corra rápido demais. Das buzinas, a ostaxa pende como uma grinalda para fora da proa, e volta para dentro do bote de novo; umas dez ou vinte braças (a chamada ostaxa de caixa) ficando enroladas na caixa na proa, continua um pouco mais o seu caminho até a amurada, onde é presa à vioneira – a corda que está ligada diretamente com o arpão; mas, antes dessa conexão, a vioneira passa por diversas confusões, e seria muito enfadonho relatá-las com minúcias.
Desse modo a ostaxa abraça o bote inteiro em seus complicados meandros, virando e torcendo-se em quase todas as direções. Todos os remadores envolvem-se em suas perigosas contorções; tanto que aos olhos tímidos do homem continental eles mais parecem malabaristas Indianos, com as mais venenosas serpentes adornando-lhes com graça os membros. Nem pode qualquer filho de uma mortal sentar-se pela primeira vez por entre esse cânhamo intrincado e, enquanto dá tudo de si aos remos, perceber que a qualquer momento, uma vez disparado o arpão, todas as horríveis contorções poderiam ser desencadeadas como raios anelados; ele não tem como se ver nessas circunstâncias sem sentir um arrepio que faça o tutano de seus ossos tremer feito geleia. E, no entanto, o costume – que coisa estranha! O que é que o costume não consegue resolver? – Gracejos mais divertidos, risos mais agradáveis, piadas mais engraçadas e emendas mais brilhantes, você nunca os ouviu mais à sua mesa do que ouviria sobre o cedro branco de meia polegada de um bote baleeiro quando suspenso em um nó de forca; como os seis burgueses de Calais diante do rei Eduardo, os seis homens da tripulação remam para as mandíbulas da morte com uma corda em volta do pescoço, como se diz.
Talvez um pouquinho só de reflexão possa agora ajudá-lo a compreender o que são esses recorrentes desastres da pesca baleeira – poucos dos quais casualmente relatados – quando, vez ou outra, um ou outro homem é puxado para fora do bote pela ostaxa, e nunca mais encontrado. Pois, quando a ostaxa é lançada, estar então sentado num bote é como estar sentado em meio aos muitos ruídos da engrenagem de uma máquina a todo o vapor, quando todas as alavancas, hastes e rodas o roçam de leve. É pior; pois você não pode ficar sentado sem se mexer no coração de tais perigos, porque o bote balança como um berço, e você é arremessado de um lado para outro, sem o menor aviso; e é tão-somente com o controle do próprio movimento e o equilíbrio de vontade e ação que você pode escapar a ser transformado num Mazeppa e levado aonde nem o próprio sol, esse todo-olhos, poderia avistá-lo.
E mais: tal como a calmaria profunda que apenas aparentemente precede e anuncia a tempestade, talvez mais terrível do que a própria tempestade – pois, de fato, a calmaria é apenas envoltório e capa para a tempestade; e a abriga dentro de si, como o – a princípio – inofensivo rifle contém a pólvora, a bala e a explosão fatais; assim também é o repouso suave da ostaxa, quando serpenteia silenciosamente em torno dos remadores antes de entrar em ação – isso é algo que encerra mais do verdadeiro terror do que qualquer outro aspecto dessa perigosa empreitada. Mas para que dizer mais? Todos os homens vivem envolvidos por ostaxas de arpão; todos nasceram com a corda no pescoço; mas é apenas quando são apanhados na súbita e traiçoeira reviravolta da morte que os mortais percebem os silenciosos, sutis e sempre presentes perigos da vida. E se você é um filósofo, embora sentado num bote baleeiro, você não sentiria no coração nem um pouquinho mais de horror do que se estivesse sentado diante da lareira à noite, não com um arpão, mas com um atiçador ao seu lado.
Herman Melville, in Moby Dick

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