E
o camarada Quim sabia disso, tanto que foi se encostando de medo que
ele entrou. Tinha poeira até na boca. Tossiu.
— Levanta
e veste a roupa, meu patrão Nhô Augusto, que eu tenho uma novidade
meia ruim, p’ra lhe contar.
E
tremeu mais, porque Nhô Augusto se erguia de um pulo e num átimo se
vestia. Só depois de meter na cintura o revólver, foi que
interpelou, dente em dente: — Fala tudo!
Quim
Recadeiro gaguejou suas palavras poucas, e ainda pôde acrescentar: —
...Eu podia ter arresistido, mas era negócio de honra, com sangue só
p’ra o dono, e pensei que o senhor podia não gostar...
— Fez
na regra, e feito! Chama os meus homens!
Dali
a pouco, porém, tornava o Quim, com nova desolação: os bate-paus
não vinham... Não queriam ficar mais com Nhô Augusto... O Major
Consilva tinha ajustado, um e mais um, os quatro, para seus capangas,
pagando bem. Não vinham, mesmo. O mais merecido, o cabeça, até
mandara dizer, faltando ao respeito: — Fala com Nhô Augusto que
sol de cima é dinheiro!... P’ra ele pagar o que está nos
devendo... E é mandar por portador calado, que nós não podemos
escutar prosa de outro, que seu Major disse que não quer.
— Cachorrada!...
Só de pique... Onde é que eles estão?
— Indo
de mudados, p’ra a chácara do Major...
— Major
de borra! Só de pique, porque era inimigo do meu pai!...Vou lá!
— Mal
em mim não veja, meu patrão Nhô Augusto, mas to dos no lugar estão
falando que o senhor não possui mais nada, que perdeu suas fazendas
e riquezas, e que vai ficar pobre, no já-já... E estão
conversando, o Major mais outros grandes, querendo pegar o senhor à
traição. Estão espalhando... — o senhor dê o perdão p’r’a
minha boca que eu só falo o que é perciso — estão dizendo que o
senhor nunca respeitou filha dos outros nem mulher casada, e mais que
é que nem cobra má, que quem vê tem de matar por obrigação...
Estou lhe contando p’ra mo do de o senhor não querer facilitar.
Carece de achar outros companheiros bons, p’ra o senhor não ir
sozinho... Eu, não, porque sou medroso. Eu cá pouco presto...
Mas,
se o senhor mandar, também vou junto.
Mas
Nhô Augusto se mordia, já no meio da sua missa, vermelho e feroz.
Montou e galopou, teso para trás, rei na sela, enquanto o Quim
Recadeiro ia lá dentro, caçar um gole d’água para beber. Assim.
Assim,
quase qualquer um capiau outro, sem ser Augusto Estêves, naqueles
dois contratempos teria percebido a chegada do azar, da unhaca, e
passaria umas rodadas sem jogar fazendo umas férias na vida: viagem,
mudança, ou qualquer coisa ensossa, para esperar o cumprimento do
ditado: “Cada um tem seus seis meses...”
Mas
Nhô Augusto era couro ainda por curtir, e para quem não sai, em
tempo, de cima da linha, até apito de trem é mau agouro. Demais,
quando um tem que pagar o gasto, desembesta até ao fim. E, desse
jeito, achou que não era hora para ponderados pensamentos.
Nele,
mal-e-mal, por debaixo da raiva, uma ideia resolveu por si: que antes
de ir à Mombuca, para matar o Ovídio e a Dionóra, precisava de
cair com o Major Consilva e os capangas. Se não, se deixasse rasto
por acertar, perdia a força. E foi.
Cresceu
poeira, de peneira. A estrada ficou reta, cheia de gente com cautela.
Chegou à chácara do Major.
Mas
nem descavalgou, sem tempo. Do tope da escada, o dono da casa foi
falando alto, risonho de ruim:
— Tempo
do bem-bom se acabou, cachorro de Estêves!...
O
cavalo de Nhô Augusto obedeceu para diante; as ferraduras tiniram e
deram fogo no lajedo; e o cavaleiro, em pé nos estribos, trouxe a
taca no ar, querendo a figura do velho.
Mas
o Major piscou, apenas, e encolheu a cabeça, porque mais não era
preciso, e os capangas pulavam de cada beirada, e eram só pernas e
braços.
— Frecha,
povo! Desmancha!
Já
os porretes caíam em cima do cavaleiro, que nem pinotes de
matrinchãs na rede.
Pauladas
na cabeça, nos ombros, nas coxas. Nhô Augusto desdeu o corpo e
caiu. Ainda se ajoelhou em terra, querendo firmar-se nas mãos, mas
isso só lhe serviu para poder ver as caras horríveis dos seus
próprios bate-paus, e, no meio deles, o capiauzinho mongo que amava
a mulher-à toa Sariema.
E
Nhô Augusto fechou os olhos, de gastura, porque ele sabia que capiau
de testa peluda, com o cabelo quase nos olhos, é uma raça de homem
capaz de guardar o passado em casa, em lugar fresco perto do pote, e
ir buscar da rua outras raivas pequenas, tudo para ajuntar à
massa-mãe do ódio grande, até chegar o dia de tirar vingança.
Mas,
aí, pachorrenta e cuspida, ressoou a voz do Major: — Arrastem p’ra
longe, para fora das minhas terras... Marquem a ferro, depois matem.
Nhô
Augusto se alteou e estendeu o braço direito, agarrando o ar com os
cinco dedos: — Cá p’ra perto, carrasco!... Só mesmo assim desse
jeito, p’ra sojigar Nhô Augusto Estêves!
E,
seguro por mãos e pés, torcido aos pulsos dos capangas, urrava e
berrava, e estrebuchava tanto, que a roupa se estraçalhava, e o
corpo parecia querer partir-se em dois, pela metade da barriga.
Desprendeu-se, por uma vez. Mas outros dos homens desceram os
porretes. Nhô Augusto ficou estendido, de-bruços, com a cara
encostada no chão.
— Traz
água fria, companheiro!
O
capiauzinho da testa peluda cantou, mal-entoado: Sou como a ema,
Que tem penas e não voa...
Os
outros começaram a ficar de cócoras.
Mas,
quando Nhô Augusto estremeceu e tornou a solevar a cabeça, o Major,
lá da varanda, apertando muito os olhos, para espiar, e se abanando
com o chapéu, tirou ladainha: — Não tem mais nenhum Nhô Augusto
Estêves, das Pindaíbas, minha gente?!...
E
os cacundeiros, em coro:
— Não
tem não! Tem mais não!...
Puxaram
e arrastaram Nhô Augusto, pelo atalho do rancho do Barranco, que
ficou sendo um caminho de pragas e judiação.
E,
quando chegaram ao rancho do Barranco, ao fim de légua, o Nhô
Augusto já vinha quase que só carregado, meio nu, todo picado de
faca, quebrado de pancadas e enlameado grosso, poeira com sangue.
Empurraram-no para o chão, e ele nem se moveu.
— É
aqui mesmo, companheiros. Depois, é só jogar lá para baixo, p’ra
nem a alma se salvar...
Os
jagunços veteranos da chácara do Major Consilva acenderam seus
cigarros, com descanso, mal interessados na execução. Mas os quatro
que tinham sido bate-paus de Nhô Augusto mostravam maior entusiasmo,
enquanto o capiauzinho sem testa, diligente e contente, ia ajuntar
lenha para fazer fogo.
E,
aí, quando tudo esteve a ponto, abrasaram o ferro com a marca do
gado do Major — que soía ser um triângulo inscrito numa
circunferência —, e imprimiram-na, com chiado, chamusco e fumaça,
na polpa glútea direita de Nhô Augusto. Mas recuaram todos, num
susto, porque Nhô Augusto viveu-se, com um berro e um salto,
medonhos.
— Segura!
Mas
já ele alcançara a borda do barranco, e pulara no espaço. Era uma
altura, O corpo rolou, lá em baixo, nas moitas, se sumindo.
— Por
onde é que a gente passa, p’ra poder ir ver se ele morreu?
Mas
um dos capangas mais velhos disse melhor: — Arma uma cruz aqui
mesmo, Orósio, para de noite ele não vir puxar teus pés...
E
deram as costas, regressando, sob um sol mais próximo e maior.
Guimarães
Rosa, in A hora e vez de Augusto Matraga
Nenhum comentário:
Postar um comentário