sábado, 11 de agosto de 2018

O coração ausente

Recebi de Natal, de um amigo que nunca vejo, uma fotografia do Monte Atlas. Ele a trouxe de uma viagem a Agadir e, por algum motivo que não soube explicar, decidiu que ela me pertencia. Já estive no Marrocos, rastejei na medina de Marrakesh e respirei o ar opressivo de Fez. Jantei (e fui assaltado) em um restaurante de Casablanca. Desci com amigos até o Magreb, mas não avistei o Monte Atlas.
Junto com a fotografia, que mostra um abismo derramado sobre o deserto, veio um cartão: “Para você se lembrar do que nunca teve”. Reli muitas vezes a dedicatória, não a decifrei. Mastiguei a dúvida durante dias até que, na última página de Talvez uma história de amor, romance de Martin Page (Rocco, tradução de Bernardo Ajzenberg), creio que encontrei uma chave.
O romance conta a história de Virgile, um publicitário parisiense que um dia, ao chegar em casa, encontra uma mensagem enigmática em sua secretária eletrônica. As palavras são fortes: “Aqui é Clara. Sinto muito, mas prefiro que a gente pare por aqui. Vou me separar de você, Virgile. Não quero mais”.
O problema de Virgile é que ele nunca amou, ou mesmo conheceu, uma mulher chamada Clara. No entanto, a mensagem é firme e se dirige, claramente, a ele. Descobrir quem é essa mulher que dele se separa sem que ele nunca a tenha conhecido se torna, para Virgile, uma missão. O romance de Martin Page é a história espantosa de sua busca.
Salto as 157 páginas do livro direto às linhas finais, que remetem à fotografia que ganhei de presente. Não sei se estou (acho que estou) estragando um pouco a surpresa do leitor. Talvez não: o importante no romance de Martin Page não é o encontro de Clara, mas sua busca.
Lá está, no penúltimo parágrafo do romance: “O instante ausente de seu encontro permanecerá para sempre presente dentro dele como um órgão secreto que não se encontra em nenhum livro de anatomia, mas sem o qual o coração não conseguiria bater”.
A fotografia do Monte Atlas me leva, da mesma forma, a esse coração ausente que, no entanto, pulsa. Talvez seja só um órgão em potência – algo que “pode ser”, não importando mais se é ou não. Vocês já se acostumaram comigo, eu espero. Já se habituaram a meu vício de ligar tudo, sempre, à literatura. Mas como deixar de pensar que, quando fala desse coração ausente que, no entanto, nos centra, Page nos fala da própria escrita?
Há outro momento na estranha aventura de Virgile que me interessa muito. Surge dez páginas antes. Na agência publicitária em que ele trabalha, todos o admiram. Decidem, então, promovê-lo a diretor e lhe dar um aumento de salário. Virgile, porém, recusa a promoção. Chega a recorrer, sem sucesso, ao sindicato, em busca de ajuda para permanecer onde está.
Um dia, desanimado, vem-lhe a figura de Antígona, que se opôs a Creonte porque ele a proibiu de oferecer uma sepultura a seu irmão. Foi presa e morreu sozinha. Pagou com a vida sua desobediência. Virgile não quer morrer. Sente-se frágil e descobre que precisa se proteger. Pensa: “Os pobres, os fracos, os sensíveis e os exilados precisam ser silenciosos e espertos”.
Virgile lembra, então, dos elefantes, animais selvagens que, para não serem dizimados, para sobreviverem, aceitaram a domesticação. Passaram a trabalhar, com paciência e graça, em construções, ou como armas, veículos ou em circos. Aceitaram os mais degradantes papéis para continuar a viver.
Muitas espécies de elefantes, as que não se adaptaram (as que não obedeceram) – por exemplo, os elefantes de Atlas –, foram extintas. Aqueles que se dedicaram a divertir os humanos nos zoológicos, nas caravanas e nas arenas continuaram vivos. Virgile se vê como um elefante. Decide que quer viver. Aceita a promoção na agência.
No seu interior, como algo extinto (ausente), mas ainda assim presente (vivo), sobrevive o animal selvagem e livre que, um dia, ele foi. Esse coração inexistente é o seu centro. Ele sabe que esse centro, embora não exista, continua a sustentá-lo. É a descoberta desse centro, que ninguém acessa e ninguém destrói justamente porque não existe, que permite que Virgile viva.
Precisa dar um nome a esse vazio. Encontra o nome que procura em Clara. A mulher que nunca conheceu e nunca amou, e de quem, no entanto, se separou, se torna o centro de sua vida. A partir daí, pode obedecer, pode se submeter – pode se exibir no grande picadeiro da modernidade – que isso não mais o machucará. Dentro dele, existe um centro intocado. Ninguém pode roubá-lo. Ninguém pode roubar Virgile de si mesmo.
Descobre Virgile que a realidade “é uma grande provedora de feridas”. Cascas, cicatrizes, calombos encobrem algo que ali não está. Sua psicanalista, a doutora Zetkin, deseja pôr o dedo na ferida de Virgile. Deseja curá-la. Virgile sabe que ela não pode tocar o que não existe – e que só por isso é apenas seu. E só por isso, ainda, o sustenta.
Chegou a pensar que tinha alguma doença neurológica e se submeteu a uma tomografia. Submeter-se ao exame lhe devolveu o sentimento de existir. Mas, quando recebe o resultado, nada aparece. Na tomografia, seu cérebro se abre em oito cortes, “como se um açougueiro o tivesse destroçado a golpes de machado”. Vasculha a imagem em busca de Clara. Ela deveria estar em algum lugar ali dentro, só que não está.
Um dia, Virgile lê o Romance da múmia, de Théophile Gautier. Espelha-se, então, na figura do arqueólogo apaixonado pela múmia da rainha Taousert, um amor impossível por uma mulher morta. Clara é sua Taousert. Amor impossível ou amor que torna todos os outros possíveis?
Volto a pensar na literatura, que trata de coisas que não existem e, no entanto, nos devolve a nosso centro. Um coração inexistente pulsa no centro das ficções. Não o pegamos, ele não existe, mas nos arrasta.
O sonho modesto de Virgile é reencontrar Clara para se desculpar. Sua amiga Faustine o questiona: “Desculpar-se de que? De ser o que você é?”. Virgile se envergonha do vazio que carrega no peito. É uma tolice. Sem esse centro inexistente, que perfura a brutalidade do mundo, ele não seria livre. Não seria Virgile.
José Castello, in Sábados inquietos

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