Minha recente
temporada gaúcha começou em São Paulo, na Casa de Francisca, onde
Arrigo Barnabé interpretou várias canções de Lupicínio
Rodrigues.
Com sua voz de
crocodilo, rouca e ironicamente romântica, Arrigo interpretou
canções de amor e angústia, canções de dor com humor e sarcasmo
do grande compositor gaúcho.
Caixa de ódio,
o nome desse show imperdível, diz muito sobre Lupicínio e suas
musas fisgadas em dancings e bailes de outrora em Porto Alegre, uma
cidade que me atrai cada vez mais, apesar do frio, do chuvisco
incessante, do vento gelado que alfineta até os ossos e nos dá uma
sensação de que ali o inverno é uma estação bem definida,
diferente do inverno paulistano: temperamental, volúvel, poluído.
As águas do
Guaíba, cobertas pela névoa; mas em algum momento vi manchas
marrons dos rios que formam o delta. E ilhas ao longe. Depois andei
por ruas mal iluminadas do centro, quase desertas na noite invernal,
e me lembrei de um romance fino e perturbador: Os ratos. Até
os pipoqueiros e estivadores ouviram falar da obra de Dyonélio
Machado; a moça que me vendeu um guarda-chuva já havia lido também
O louco do Cati, e quando passei em frente ao edifício da
antiga Globo, me lembrei dos livros publicados por essa editora:
clássicos estrangeiros traduzidos por grandes poetas, romancistas e
críticos literários.
Esses livros de
capa amarela atravessavam o Brasil e chegavam às livrarias da rua
Henrique Martins, no centro de Manaus; depois entravam no quarto que
eu dividia com um dos meus tios. “Os livros que vêm do Sul”,
dizia meu tio, folheando e farejando o objeto cultuado, que à noite
ele lia no quintal, deitado numa rede iluminada por um candeeiro
enganchado no galho de um jambeiro.
Os livros que vêm
do Sul: nunca esqueci essa frase nem a visão do leitor ao relento.
Em Porto Alegre me
encontrei com muitos jovens interessados por literatura. Nada de
autoajuda, nem de cabanas, crepúsculos e congêneres. Dizem que esse
interesse é por causa do inverno, da reclusão constrangida pelo
frio prolongado. Será?
Há bons leitores
em todos os climas e latitudes, a razão mais plausível do interesse
pela leitura é a qualidade do ensino no Rio Grande do Sul.
Disse isso ao meu
amigo gaúcho Serguei Barzican, que me convidou para assistir a um
encontro literário em que ele seria o mediador de um debate sobre a
tradução de Finnegans Wake, a obra de James Joyce que foi
lida na íntegra por um punhado de tradutores e críticos.
“Uma noite de
domingo em homenagem à literatura de vanguarda”, disse Serguei,
conduzindo o carro por bairros que eu desconhecia.
Numa rua escura
paramos diante de um pequeno galpão iluminado: uma fábrica antiga
que se tornara um lugar de encontros literários.
Foi uma noite
inesquecível para mim, e tensa para Serguei, porque não é mole
mediar uma mesa sobre o Finnegans Wake.
Ouvi os comentários
dos dois debatedores sobre a obra de Joyce, depois ouvi com prazer
trechos do Finnegans Wake, extasiado com a melodia do pesadelo
noturno e cíclico, com a loucura inventiva do irlandês genial.
Quando acordei, quer dizer, quando abri os olhos, vi um corpo
navegando no espaço, não era uma visão alucinante, e sim uma
bailarina, presa na cintura por um cabo enganchado numa viga da
estrutura metálica. Nesse momento a leitura foi interrompida porque
os debatedores discordavam sobre uma ou duas palavras da tradução.
Um deles dizia que o mais correto era: “Finda domingo”. O outro
afirmava que o neologismo “Segundalba” era mais apropriado, mais
fiel ao original. De qualquer modo, entendi que o domingo declinava e
que a segunda-feira despontava no pesadelo de uma personagem ou do
leitor.
Os dois gaúchos
discutiam com fervor e, quando o fervor tomou ares de uma exaltação
ríspida, o pobre Serguei Barzican entendeu que o seu papel de
mediador era inútil. Serguei olhava para o céu e via o corpo da
bailarina morena que ia e vinha com movimentos de artista circense, o
rosto da moça parecia alheio às duas vozes que agora duelavam em
inglês, um inglês áspero, com algo do sotaque gaúcho. Mas era o
rosto silencioso da bailarina que falava mais alto, o corpo belíssimo
flutuando livremente no espaço fora do tempo. E que braços e pernas
voadores, tchê! Quanto equilíbrio e harmonia e perfeição!
Aos poucos a
plateia foi se esquecendo de “Finda domingo” e “Segundalba”,
eu mesmo abstraí essas palavras beligerantes e me entreguei à magia
corporal da bailarina no ar, agradecendo a James Joyce e a seus dois
leitores por essa visão sublime na noite gelada de um domingo gaúcho
que chegava ao fim.
Milton Hatoum,
in Um solitário à espreita
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