sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Em nome do capital

A nacionalização da Indonésia pela Coroa holandesa (1800) e a da Índia pela Coroa britânica (1858) não colocaram fim à aliança entre capitalismo e império. Ao contrário, a conexão só se tornou mais forte durante o século XIX. As empresas de capital aberto já não precisavam fundar e governar colônias privadas – seus administradores e grandes acionistas agora controlavam os bastidores do poder em Londres, Amsterdã e Paris, e eles podiam contar com o Estado para cuidar de seus interesses. Como Marx e outros críticos sociais ironizaram, os governos ocidentais estavam se tornando um sindicato capitalista.
O exemplo mais notório de como os governos se curvaram diante do dinheiro foi a Primeira Guerra do Ópio, travada entre a Grã-Bretanha e a China (1840-1842). Na primeira metade do século XIX, a Companhia das Índias Orientais e vários homens de negócio britânicos fizeram fortuna exportando drogas, principalmente ópio, para a China. Milhões de chineses ficaram viciados, o que debilitou o país do ponto de vista tanto econômico quanto social. No fim dos anos 1830, o governo chinês proibiu o tráfico de drogas, mas os comerciantes britânicos simplesmente ignoraram a lei. As autoridades chinesas começaram a confiscar e destruir os carregamentos de droga. Os cartéis de droga tinham relações em Westminster e na Downing Street – na verdade, muitos membros do parlamento e ministros tinham ações nas empresas de droga –, de modo que eles pressionaram o governo para agir.
Em 1840, a Grã-Bretanha declarou guerra à China em nome do “livre comércio”. Foi uma vitória fácil. A China, excessivamente confiante, não foi páreo para as novas superarmas dos britânicos – navios a vapor, artilharia pesada, foguetes e fuzis de disparo rápido. Segundo o tratado de paz que se seguiu, a China concordou em não restringir as atividades dos comerciantes de drogas britânicos e em compensá-los pelos danos causados pela polícia chinesa. Além disso, a Grã-Bretanha exigiu e obteve o controle de Hong Kong, que eles passaram a usar como uma base segura para o tráfico de drogas (Hong Kong continuou nas mãos dos britânicos até 1997). No fim do século XIX, cerca de 40 milhões de chineses, um décimo da população do país, eram viciados em ópio.
O Egito também aprendeu a respeitar o braço comprido do capitalismo britânico. Durante o século XIX, investidores franceses e britânicos emprestaram grandes somas aos governantes do Egito, primeiro a fim de financiar o projeto do Canal de Suez e depois para financiar iniciativas muito menos bem-sucedidas. A dívida egípcia inflou, e os credores europeus se intrometeram cada vez mais em assuntos egípcios. Em 1881, os nacionalistas egípcios estavam fartos e se rebelaram, declarando uma anulação unilateral de toda a dívida externa. A rainha Vitória não ficou satisfeita. Um ano depois, ela enviou seu exército e sua marinha para o Nilo, e o Egito continuou sendo um protetorado britânico até o fim da Segunda Guerra Mundial.
Essas estão longe de terem sido as únicas guerras travadas para proteger interesses de investidores. Na verdade, a própria guerra poderia se tornar uma commodity, assim como o ópio. Em 1821, os gregos se rebelaram contra o Império Otomano. A rebelião despertou grande simpatia nos círculos liberais e românticos da Grã-Bretanha – Lorde Byron, o poeta, inclusive foi à Grécia para lutar ao lado dos insurgentes. Mas os financistas de Londres também viram nisso uma oportunidade. Propuseram aos líderes rebeldes a emissão de Títulos da Rebelião Grega, comercializáveis na bolsa de valores de Londres. Os gregos prometeriam pagar os títulos, acrescidos de juros, se e quando conquistassem a independência. Investidores privados compraram títulos para lucrar, ou por simpatizar com a causa grega, ou por ambos os motivos. O valor dos Títulos da Rebelião Grega subia e caía na bolsa de valores conforme os sucessos e fracassos militares nos campos de batalha da Hellas. Aos poucos, os turcos levaram a melhor. Com uma derrota iminente dos rebeldes, os acionistas se viram diante da perspectiva de perder seus tesouros. O interesse dos acionistas era o interesse da nação, de modo que os britânicos organizaram uma frota internacional e, em 1827, afundaram a principal flotilha otomana na batalha de Navarino. Depois de séculos de dominação, a Grécia finalmente estava livre. Mas a liberdade veio com uma dívida gigantesca que o novo país não tinha como pagar. A economia grega foi hipotecada a credores britânicos durante décadas.
O abraço de urso entre o capital e a política teve implicações de longo alcance para o mercado de crédito. A quantidade de crédito em uma economia é determinada não só por fatores puramente econômicos, como a descoberta de novos campos de petróleo ou a invenção de uma nova máquina, como também por acontecimentos políticos, como mudanças de regime ou políticas externas mais ambiciosas. Depois da batalha de Navarino, os capitalistas britânicos estavam mais dispostos a investir seu dinheiro em negócios ultramarinos arriscados. Eles viram que, se um devedor estrangeiro se recusasse a pagar os empréstimos, o exército de Sua Majestade traria o dinheiro deles de volta.
É por isso que, hoje, a classificação de risco de um país é muito mais importante para seu bem-estar econômico do que seus recursos naturais. As classificações de risco indicam a probabilidade de um país pagar suas dívidas. Além de dados puramente econômicos, levam em consideração fatores políticos, sociais e até mesmo culturais. Um país rico em petróleo, mas amaldiçoado com um governo despótico, guerra endêmica e um sistema jurídico corrupto geralmente receberá uma classificação de risco alta. Em consequência, é provável que continue relativamente pobre, já que não será capaz de levantar o capital necessário para aproveitar ao máximo sua riqueza de petróleo. Um país desprovido de recursos naturais, mas que desfruta de paz, de um sistema jurídico justo e de um governo livre provavelmente receberá uma classificação de risco baixa. Como tal, pode conseguir levantar capital suficiente para financiar um bom sistema educativo e fomentar uma indústria de tecnologia próspera.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

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