sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Garranchos [VII]

Eu tinha deixado a cidade na agonia da luz elétrica e noctivagava estrada em fora. Passei as águas verdes e podres do velho açude, passei a padaria Mog e caminhei ainda.
Mas ao enfrentar a casa dos mortos, branca na treva, tolheu-me os passos uma visão: era uma procissão de almas que se iam, enchendo o caminho de espanto e de medo! Fiquei branco com elas; as pernas tremiam-me como tenros galhos que o vento açoitasse; os cabelos encrisparam-se-me. Estive quase a pedir socorro! Mas ninguém me valeria, porque só almas me rodeavam...
Depois uma que me ficara perto falou:
O senhor vota no governo, pois não vota? Então vai fazer-me um grande favor. Fui eleitor também. Votava na chapa oficial. Ora o senhor me vai levar um recado lá para a rua. Está vendo? Depois que o portão caiu, os companheiros deixaram-me só! Vão-se sem mais aquelas, sem licença de ninguém. De tantos habitantes desta casa imensa, já poucos restam. Eu gosto de cumprir ordens. Fui militar. Um dia, por uma simples infração, mandaram-me ao xadrez, quinze dias, a pão e água! Depois deste castigo, nunca mais desobedeci. Ninguém nos disse ainda que nós podíamos ir; por isso continuo no meu posto. É certo que arrancaram o portão, mas nada nos disseram... Vê o senhor? Aquilo ali faz dó! Os cães invadem-nos os leitos, os porcos chafurdam tudo, as galinhas nos martirizam remexendo a terra que nos cobre, à cata de alimentos. É uma invasão danada! A vida aqui vai se tornando insuportável! Os outros fogem apavorados! Parece até que me julgam alguma autoridade aqui, porque saem às escondidas. Mas eu fico, todo cheio de aflições. O senhor parece ter bom coração, porque está com os olhos cheios d’água. Quando chegar à rua, vá ao palacete da águia e faça-me o favor de dizer tudo isto ao governo e pedir-lhe que mande um portão para cá. Do contrário isto ficará às moscas.
É certo que não fui pessoalmente à intendência; mas creio que reproduzindo aqui, textualmente, as palavras que ouvi à alma, satisfaço-lhe o pedido.
Graciliano Ramos, in Garranchos

A batalha

Perdi o medo de mim. Adeus.
Vou às paisagens do frio atrás do Jonathan.
Deve ser assim que se vive,
na embriagues deste voo
no rumo certo da morte.
Amo Jonathan.
Eis aí o monocórdico, diarréico assunto.
Ele quer te ver’, alguém me disse no sonho.
E desencadearam-se as formas onde Deus se homizia.
Pode-se adorar tufos de grama, areia,
não se descobre donde vem os oboés.
Jonathan quer me ver.
Pois que veja.
O diabo uiva algemado nas profundezas do inferno,
enquanto eu
tiro o corpo da roupa.
Adélia Prado

Temor

Tememos a Deus porque existe. Mais medo temos do demônio porque não existe.”
Mia Couto, in Antes de nascer o mundo

Capítulo 46 - A Herança

Veja-nos agora o leitor, oito dias depois da morte de meu pai, - minha irmã sentada num sofá, - pouco adiante, o Cotrim, de pé, encostado a um consolo, com os braços cruzados e a morder o bigode, - eu a passear de um lado para outro, com os olhos no chão. Luto pesado. Profundo silêncio.
- Mas afinal, disse Cotrim; esta casa pouco mais pode valer de trinta contos; demos que valha trinta e cinco...
- Vale cinquenta, ponderei; a Sabina sabe que custou cinquenta e oito...
- Podia custar até sessenta, tomou Cotrim; mas não se segue que os valesse, e menos ainda que os valha hoje. Você sabe que as casas, aqui há anos, baixaram muito. Olhe, se esta vale os cinquenta contos, quantos não vale a que você deseja para si, a do Campo?
- Não fale nisso! Uma casa velha.
- Velha! exclamou Sabina, levantando as mãos ao teto.
- Parece-lhe nova, aposto?
- Ora, mano, deixe-se dessas coisas, disse Sabina, erguendo-se do sofá; podemos arranjar tudo em boa amizade, e com lisura. Por exemplo, o Cotrim não aceita os pretos, quer só o boleeiro de papai e o Paulo...
- O boleeiro não, acudi eu; fico com a sege e não hei de ir comprar outro.
- Bem, fico com o Paulo e o Prudêncio.
- O Prudêncio está livre.
- Livre?
- Há dois anos.
- Livre? Como seu pai arranjava estas coisas cá por casa, sem dar parte a ninguém! Está direito. Quanto à prata... creio que não libertou a prata?
Tínhamos falado na prata, a velha prataria do tempo de Dom José I, a porção mais grave da herança, já pelo lavor, já pela vetustez, já pela origem da propriedade; dizia meu pai que o Conde da Cunha, quando vice-rei do Brasil, a dera de presente a meu bisavô Luís Cubas.
- Quanto à prata, continuou o Cotrim, eu não faria questão nenhuma, se não fosse o desejo que sua irmã tem de ficar com ela; e acho-lhe razão. Sabina é casada, e precisa de uma copa digna, apresentável. Você é solteiro, não recebe, não...
- Mas posso casar.
- Para quê? interrompeu Sabina.
Era tão sublime esta pergunta, que por alguns instantes me fez esquecer os interesses. Sorri; peguei na mão de Sabina, bati-lhe levemente na palma, tudo isso com tão boa sombra, que o Cotrim interpretou o gesto como de aquiescência, e agradeceu-mo.
- Que é lá? redargüi; não cedi coisa nenhuma, nem cedo.
- Nem cede?
Abanei a cabeça.
- Deixa, Cotrim, disse minha irmã ao marido; vê se ele quer ficar também com a nossa roupa do corpo, é só o que falta.
- Não falta mais nada. Quer a sege, quer o boleeiro, quer a prata, quer tudo. Olhe, é muito mais sumário citar-nos a juízo e provar com testemunhas que Sabina não é sua irmã, que eu não sou seu cunhado, e que Deus não é Deus. Faça isto, e não perde nada, nem uma colherinha. Ora, meu amigo, outro ofício!
Estava tão agastado, e eu não menos, que entendi oferecer um meio de conciliação: dividir a prata. Riu-se e perguntou-me a quem caberia o bule e a quem o açucareiro; e depois desta pergunta, declarou que teríamos tempo de liquidar a pretensão, quando menos em juízo. Entretanto, Sabina fora até janela que dava para a chácara, - e depois de um instante, voltou, e propôs ceder o Paulo e outro preto, com a condição de ficar com a prata; eu ia dizer que não me convinha, mas o Cotrim adiantou-se e disse a mesma coisa.
- Isso nunca! não faço esmolas! disse ele. Jantamos tristes. Meu tio cônego apareceu sobremesa, e ainda presenciou uma pequena altercação.
- Meus filhos, disse ele, lembrem-se que meu irmão deixou um pão bem grande para ser repartido por todos.
Mas o Cotrim:
- Creio, creio. A questão, porém, não é de pão, é de manteiga. Pão seco é que eu não engulo.
Fizeram-se finalmente as partilhas, mas nós estávamos brigados. E digo-lhes, que ainda assim, custou-me muito a brigar com Sabina. Éramos tão amigos! Jogos pueris, fúrias de crianças, risos e tristezas da idade adulta, dividimos muita vez esse pão da alegria e da miséria, irmamente, como bons irmãos que éramos. Mas estávamos brigados. Tal qual a beleza de Marcela, que se esvaiu com as bexigas.
Machado de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas

A dor da morte

Nos breves intervalos em que a chuva parava de cair e os raios de sol se infiltravam pelas nuvens, o arco-íris aparecia levando os homens a se lembrar da promessa que Deus fizera depois do dilúvio: ele nunca mais permitiria que as águas destruíssem a vida. Mas parece que ele se esquecera. A chuva caía sem parar alagando campos, inundando cidades, derrubando casas, matando gente e bichos.
Ele era um menino de 14 anos, feliz, que gostava de viver. Filho único, morava em Floripa. Como todos os meninos e meninas, ele deveria ir à escola naquele dia porque a chuva não estava tão forte assim. E andar na chuva é uma arte que dá alegria às crianças.
Chegou a hora do recreio, tempo livre para brincar. A chuva voltou a cair mais forte, com raios e trovões. Havia um lugar abrigado da chuva, uma marquise, construída fazia três semanas. Era uma cobertura de cimento, planejada por engenheiros que sabiam o que estavam fazendo. Sólida. Ele se abrigou sob a marquise para ver a chuva. Mas a marquise, ignorando ferro e cimento, caiu sobre ele, esmagando-o. Agora, no seu lugar, resta uma dor que nenhuma palavra pode conter.
A morte faz calar as palavras. São inúteis. Servem para nada. Somente os tolos tentam consolar. Eles não sabem que as palavras de consolo, brotadas das mais puras intenções, são ofensas à dor da pessoa golpeada pela morte. Porque elas, as palavras de consolo, são ditas no pressuposto de que elas têm poder para diminuir o vazio que a morte deixou. Como se a pessoa que a morte levou não fosse tão importante assim e algumas palavras pudessem diminuir a dor que sua morte deixou.
Mas não há palavra ou poema que possa com as únicas palavras que a morte deixa escritas: “nunca mais”. Nada existe de mais definitivo e mais doloroso que esse “nunca mais...”.
Bem fizeram os amigos de Jó que o visitaram com o intuito de consolá-lo na sua desgraça. O texto bíblico descreve o que aconteceu: 
 
Quando eles de longe o viram, eles não o reconheceram; e eles levantaram suas vozes e choraram. E eles se assentaram com ele no chão durante sete dias e sete noites, e nenhum deles lhe disse uma palavra sequer, porque eles viram que o seu sofrimento era muito grande” (Jó 2.13). 
 
Todos os amigos querem diminuir o sofrimento da mãe. Cercam-na com palavras que, pensam eles, trarão algum consolo. Mas que palavra ou poema poderá substituir o seu filho? E a chamam ao telefone para dizer-lhe suas palavras doces e cheias das intenções mais puras. Mas a pureza das intenções não garante a sua sabedoria. E aí, à dor da morte do filho, acrescenta-se uma outra dor: a mãe é obrigada a ouvir os consoladores delicada e pacientemente, com sorrisos de agradecimento... Mas são tantos os consoladores e eles cansam tanto...
Gestos de consolo, lembro-me de um que me comoveu. Eu vivia em Nova York com a minha família. Aí o pai da minha esposa foi morto num acidente, no Brasil. Ao abrir a porta do apartamento, no chão estava um buquê de flores. Aquele que o trouxera se retirara em silêncio. Não tocara a campainha. Mas deixara um bilhete onde estava escrito: “Não quis perturbar a sua dor...”.
Rubem Alves, in Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

O mal

O mal às vezes está na mão como um instrumento conhecido ou desconhecido; se alguém tem vontade de fazer isso, ele pode ser posto de lado sem oposição.
Franz Kafka, in Aforismos reunidos

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

A arte de ser velho

É curioso como, com o avançar dos anos e o aproximar da morte, vão os homens fechando portas atrás de si, numa espécie de pudor de que o vejam enfrentar a velhice que se aproxima. Pelo menos entre nós, latinos da América, e sobretudo, do Brasil. E talvez seja melhor assim; pois se esse sentimento nos subtrai em vida, no sentido de seu aproveitamento no tempo, evita-nos incorrer em desfrutes de que não está isenta, por exemplo, a ancianidade entre alguns povos europeus e de alhures.
Não estou querendo dizer com isso que todos os nossos velhinhos sejam nenhuma flor que se cheire. Temo-los tão pilantras como não importa onde, e com a agravante de praticarem seus malfeitos com menos ingenuidade. Mas, como coletividade, não há dúvida que os velhinhos brasileiros têm mais compostura que a maioria da velhorra internacional (tirante, é claro, a China), embora entreguem mais depressa a rapadura.
Talvez nem seja compostura; talvez seja esse pudor de que falávamos acima, de se mostrarem em sua decadência, misturado ao muito frequente sentimento de não terem aproveitado os verdes anos como deveriam. Seja como for, aqui no Brasil os velhos se retraem daqueles seus semelhantes que, como se poderia dizer, têm a faca e o queijo nas mãos. Em reuniões e lugares públicos não têm sido poucas as vezes em que já surpreendi olhares de velhos para moços que se poderiam traduzir mais ou menos assim: “Desgraçado! Aproveita enquanto é tempo porque não demora muito vais ficar assim como eu, um velho, e nenhuma dessas boas olhará mais sequer para o teu lado...”
Isso, aqui no Brasil, é fácil sentir nas boates, com exceção de São Paulo, onde alguns cocorocas ainda arriscam seu pezinho na pista, de cara cheia e sem ligar ao enfarte. No Rio é bem menos comum, e no geral, em mesa de velho não senta broto, pois, conforme reza a máxima popular, quem gosta de velho é reumatismo. O que me parece, de certo modo, cruel. Mas, o que se vai fazer? Assim é a mocidade-ínscia, cruel e gulosa em seus apetites. Como aliás, muito bem diz também a sabedoria do povo: homem velho e mulher nova, ou chifre ou cova. Na Europa, felizmente para a classe, a cantiga soa diferente. Aliás, nos Estados Unidos dá-se, de certo modo, o mesmo. É verdade que no caso dos Estados Unidos a felicidade dos velhos é conseguida um pouco à base da vigarista; mas na Europa não.
Na Europa veem-se meninas lindas nas boates dançando cheek to cheek com verdadeiros macróbios, e de olhinho fechado e tudo. Enquanto que nos Estados Unidos eu creio que seja mais... cheek to cheek. Lembro-me que em Paris, no Club St. Florentin, onde eu ia bastante, havia na pista um velhinho sempre com meninas diferentes. O “matusa” enfrentava qualquer parada, do rock ao chá-chá-chá e dançava o fino, com todos os extravagantes passinhos com que os gauleses enfeitam as danças do Caribe, sem falar no nosso samba. Um dia, um rapazinho folgado veio convidar a menina do velhinho para dançar e sabem o que ela disse? - isso mesmo que vocês estão pensando e mais toda essa coisa. E enquanto isso, o velhinho de pé, o peito inchado, pronto para sair na física.
Eu achei a cena uma graça só, mas não sei se teria sentido o mesmo aqui no Brasil, se ela se tivesse passado no Sacha's com algum parente meu. Porque, no fundo, nós queremos os nossos velhinhos em casa, em sua cadeira de balanço, lendo Michel Zevaco ou pensando na morte próxima, como fazia meu avô. Velhinho saliente é muito bom, muito bom, mas de avô dos outros. Nosso, não.
Vinicius de Moraes, in Para viver um grande amor

Cântico dos cânticos

Maria, com um vinco entre as sobrancelhas, escolhe o segundo prato. Depois sorri-me deliciosamente. Como não encantar-me? Como não comparar-me a Salomão? Sustentai-me (diz-lhe a Sulamita), sustentai-me com passas, confortai-me com maçãs, que desfaleço de amor.
Mário Quintana, in Sapato florido

A lenda da embriaguez

Preparava-se Noé para plantar a primeira vinha e eis que surge diante dele a figura negra e hedionda do Demônio.
Que pretendes plantar aí? — perguntou o Demônio.
Uma vinha! — informou Noé, encarando com olhar sereno o seu insolente interrogante.
E como são os frutos que esperas colher, meu velho? — inquiriu friamente o Demo.
Ora — explicou o Patriarca de bom humor —, são frutos deliciosos, sempre doces. Os homens poderão saboreá-los maduros e frescos ou secos e açucarados. Do caldo desse fruto poderá ser fabricada uma bebida — o vinho — de incomparável sabor. Essa bebida levará alegria e inspiração aos corações dos mortais!
Quero associar-me contigo no plantio dessa vinha! — propôs o Demônio com certo acinte na voz.
Muito bem — concordou Noé. — Trabalhemos juntos. Ficarás, desde já, encarregado de regar a terra.
E o Demônio, no desejo de agir pela maldade, regou a terra com o sangue de quatro animais tirados da Arca: o cordeiro, o leão, o porco e o macaco.
Em consequência desse capricho extravagante do Maligno, aquele que se entrega ao vício degradante da embriaguez recorda, forçosamente, um dos quatro animais. Bem infelizes os que se deixam dominar pelo álcool! Tornam-se alguns sonolentos e inermes como um cordeiro; mostram-se outros exaltados e brutais como o leão; muitos, sob a ação perturbadora da bebida que os envenena, ficam estúpidos como um porco. E há, finalmente, aqueles que, depois dos primeiros goles, fazem trejeitos, dizem tolices e saracoteiam como macacos.
Malba Tahan, in Lendas do bom Rabi

O bobo e a Vênus

Dia admirável! O vasto parque desmaia sob o olhar candente do sol, como a juventude sob o domínio do amor.
O êxtase universal das coisas exprime-se sem nenhum ruído. Até as águas parecem adormecidas. Ao contrário das festas humanas, há aqui uma orgia silenciosa.
Dir-se-ia que uma luz cada vez mais intensa vai dando maior brilho aos objetos; que as flores excitadas ardem de desejo de rivalizar com o azul do céu pela energia das cores; e que o calor, tornando-lhes visível o perfume, fá-lo subir em direção ao astro, como fumaça.
Todavia, nessa felicidade universal, notei um ser aflito.
Aos pés de uma Vênus gigantesca, um desses bobos artificiais, desses tolos voluntários encarregados de fazer rir os reis quando o Remorso ou o Tédio os persegue, vestindo uma roupa berrante e ridícula, coroado de chifres e de guizos, todo encolhido junto à estátua, levanta os olhos cheios de lágrimas para a Deusa imortal.
Dizem os seus olhos: — Sou o último e o mais solitário dos homens, privado de amor e de amizade, e muito inferior, portanto, ao mais imperfeito dos animais. E fui feito, também eu, para compreender e sentir a Beleza imortal! Oh! Deusa! Tende pena da minha tristeza e do meu delírio!
Mas, a Vênus implacável fita, ao longe, não sei quê, com seus olhos de mármore.
Charles Baudelaire, in Pequenos poemas em prosa

Do amigo

Sempre há um de mais comigo” — assim pensa o eremita. “Sempre um vezes um — com o tempo, isso faz dois!”
Eu e mim estamos sempre muito envolvidos numa conversa: como suportar isso, se não houver um amigo?
Para o eremita, o amigo é sempre o terceiro: o terceiro é a cortiça que não deixa que afunde a conversa dos dois.
Ah, existem profundezas demais para todos os eremitas. Por isso eles tanto anseiam por um amigo e suas alturas.
Nossa fé em outros denuncia o que gostaríamos de crer em nós mesmos. Nosso anseio por um amigo é nosso denunciante. E muitas vezes queremos, com o amor, apenas passar por cima da inveja.
E muitas vezes atacamos e fazemos um inimigo, a fim de ocultar que somos atacáveis.
Sê ao menos meu inimigo!” — assim fala o verdadeiro respeito, que não ousa solicitar amizade.
Querendo-se ter um amigo, é preciso também querer guerrear por ele: e para guerrear é preciso poder ser inimigo.
No amigo devemos honrar também o inimigo. Podes aproximar-te bastante do teu amigo sem passar para o seu lado?
Devemos ter, no amigo, nosso melhor inimigo. Deves lhe ter o coração o mais próximo possível, quando a ele te opuseres.
Não queres usar nenhuma roupa diante do teu amigo? Deve ser uma honra, para teu amigo, que te mostres a ele tal como és? Mas por isso ele te mandará ao Diabo!
Quem não faz segredo de si, provoca irritação: tendes muita razão em recear a nudez! Se fôsseis deuses, então poderíeis vos envergonhar de vossa roupa!
Não podes te adornar bem o suficiente para teu amigo: pois deves ser, para ele, uma flecha e um anseio pelo super-homem.
Já viste teu amigo dormindo — para saber que aparência tem? Pois qual é, fora disso, o rosto do teu amigo? É o teu próprio rosto, num espelho tosco e imperfeito.
Já viste teu amigo dormindo? Não te espantaste com sua aparência? Oh, meu amigo, o homem é algo que tem de ser superado.
O amigo deve ser mestre no adivinhar e no silenciar: não deves querer ver tudo. Teu sonho deve te revelar o que teu amigo faz acordado.
Que a tua compaixão seja um adivinhar: para que saibas, primeiro, se o teu amigo quer compaixão. Talvez ele ame em ti o olhar constante e a visão da eternidade.
Que a compaixão pelo amigo se esconda sob uma dura casca, e que percas um dente ao mordê-la. Assim ela terá delicadeza e doçura.
És puro ar e solidão e pão e remédio para o teu amigo? Há quem não pode se soltar dos próprios grilhões e, no entanto, é um salvador para o amigo.
És um escravo? Então não podes ser amigo. És um tirano? Então não podes ter amigos.
Por muito tempo houve um escravo e um tirano escondidos na mulher. Por isso ela ainda não é capaz de amizade: conhece apenas o amor.
No amor da mulher há injustiça e cegueira a tudo o que ela não ama. E mesmo no amor sapiente da mulher existe ainda ataque, noite e raio ao lado da luz.
A mulher ainda não é capaz de amizade: são ainda gatos as mulheres, e pássaros. Ou, no melhor dos casos, vacas.
A mulher ainda não é capaz de amizade. Mas dizei-me, homens, qual de vós é capaz de amizade?
Oh, que pobreza a vossa, homens, e que avareza da alma! O quanto dais ao amigo, darei até ao meu inimigo, sem ficar mais pobre por isso.
Existe camaradagem: que exista amizade!
Assim falou Zaratustra.
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

O monstro meu amigo

No começo eu não gostava dele, porque achava que ele ia me comer um pé.
Os monstros são agarradores de mulheres, levam uma mulher em cada ombro, e quando são monstros velhinhos ficam cansados e jogam uma das mulheres na beira do caminho. Mas este de quem eu falo, o meu amigo, é um monstro especial. Mas nós nos entendemos bem, apesar do coitado não saber falar e de todos sentirem medo dele. Este monstro meu amigo é tão, mas tão grande, que os gigantes não chegam nem no seu tornozelo, e ele jamais agarra mulheres nem nada.
Ele vive na África. No céu não vive, porque, se estivesse no céu igual que Deus, cairia. É grande demais para poder viver por aí pelo céu. Existem outros monstros menores que ele, e então vivem no infinito, perto de onde fica Plutão, ou mais longe ainda, lá no onfinito ou no piranfinito. Mas este monstro meu amigo não tem nenhum outro remédio a não ser viver na África.
Volta e meia ele me visita. Ninguém pode vê-lo, mas ele pode ver todo mundo. Às vezes é um canguruzinho que pula na minha barriga quando dou risada, ou é o espelho que me devolve a cara quando parece que estava perdida, ou é uma serpente disfarçada em minhoca e que monta guarda na minha porta para que ninguém venha me levar.
Agora, hoje ou amanhã, o monstro meu amigo vai aparecer caminhando pelo mar, transformado num guerreiro que mais imenso não poderia ser, jorrando fogo pela boca. Vai dar um soprão e arrebentar a cadeia onde meu papai está preso, e vai trazê-lo para mim na unha do dedo minguinho, e vai enfiá-lo pela janela em meu quarto. Eu vou dizer “olá”, ele vai voltar para a África, devagarinho, pelo mar.
Então papai, meu papai, vai sair e comprar balas e caramelos para mim e uma garotinha e vai conseguir um cavalo de verdade e vamos sair galopando pela terra, eu agarrado na cauda do cavalo, a galope, para longe, e depois, quando papai ficar pequeno, eu vou contar as histórias desse monstro meu amigo que veio da África, para que meu papai durma quando a noite chegar.
Eduardo Galeano, in Vagamundo

Vivo em lembranças, morro de esquecido

Doces lembranças da passada glória,
Que me tirou fortuna roubadora,
Deixai-me descansar em paz uma hora,
Que comigo ganhais pouca vitória.

Impressa tenho na alma larga história
Deste passado bem, que nunca fora;
Ou fora, e não passara: mas já agora
Em mim não pode haver mais que a memória.

Vivo em lembranças, morro de esquecido
De quem sempre devera ser lembrado,
Se lhe lembrara estado tão contente.

Oh quem tornar pudera a ser nascido!
Soubera-me lograr do bem passado,
Se conhecer soubera o mal presente.
Luís Vaz de Camões

Marionete

Sou como uma marionete quebrada cujos olhos tivessem caído para dentro.”
Estas palavras de um doente mental valem mais do que o conjunto das obras de introspecção.
E. M. Cioran, in Silogismos da Amargura

Dias de Cinza: 1945-1949 (1)


Um segredo vale o que valem aqueles de quem temos de guardá-lo. Ao acordar, o meu primeiro impulso foi dar parte da existência do Cemitério dos Livros Esquecidos ao meu melhor amigo. Tomás Aguilar era um colega de estudos que dedicava o tempo livre e o talento à descoberta de geringonças engenhosíssimas mas de escassa aplicação prática, como o dardo aerostático ou o pião-dínamo. Ninguém melhor que Tomás para compartilhar aquele segredo. Sonhando acordado, imaginava o meu amigo Tomás e eu próprio apetrechados ambos de lanternas e bússola, prestes a desvendar os segredos daquela catacumba bibliográfica. Depois, recordando a minha promessa, decidi que as circunstâncias aconselhavam o que nos romances de intriga policial se denominava outro modus operandi. Ao meio-dia abordei o meu pai para o questionar acerca daquele livro e de Julián Carax, que no meu entusiasmo tinha imaginado célebres em todo o mundo. O meu plano era deitar mão a todas as suas obras e lê-las de fio a pavio em menos de uma semana. Qual não foi a minha surpresa ao descobrir que o meu pai, livreiro de raça e bom conhecedor dos catálogos editoriais, nunca tinha ouvido falar de A Sombra do Vento ou de Julián Carax. Intrigado, o meu pai inspecionou a página com os dados da edição.
Segundo isto, este exemplar faz parte de uma edição de dois mil e quinhentos exemplares impressa em Barcelona, por Cabestany Editores, em Dezembro de 1935.
Conheces essa editora?
Fechou há anos. Mas a edição original não é esta, e sim outra de Novembro do mesmo ano, mas impressa em Paris... A editora é Galliano Neuval. Não me diz nada.
Então o livro é uma tradução? – perguntei, desconcertado.
Não refere que o seja. Pelo que aqui se vê, o texto é original.
Um livro em castelhano, editado primeiro em França?
Não será a primeira vez, com os tempos que correm – aduziu o meu pai. – Se calhar o Barceló pode-nos ajudar...
Gustavo Barceló era um velho colega do meu pai, dono de uma livraria cavernosa na rua Fernando, que capitaneava a fina-flor do grêmio de alfarrabistas. Vivia perpetuamente agarrado a um cachimbo apagado que desprendia eflúvios de mercado persa e descrevia-se a si próprio como o último romântico. Barceló sustentava que na sua linhagem havia um parentesco distante com lorde Byron, apesar de ser natural de Caldas de Montbuy. Talvez no intuito de evidenciar esta ligação, Barceló vestia invariavelmente à maneira de um dândi do século dezenove, usando lenço de pescoço, sapatos de verniz brancos e um monóculo sem graduação que segundo as más-línguas não tirava nem na intimidade da retrete. Na realidade, o parentesco mais significativo a seu crédito era o do progenitor, um industrial que tinha enriquecido por meios mais ou menos turvos em finais do século XIX. Segundo me explicou o meu pai, Gustavo Barceló, tecnicamente, nadava em dinheiro, e a livraria era mais paixão que negócio. Amava os livros sem reserva e, embora ele o negasse rotundamente, se alguém entrava na sua livraria e se apaixonava por um exemplar cujo preço não podia comportar, ele fazia um abatimento até onde fosse necessário, ou inclusivamente oferecia-lho se calculasse que o comprador era um leitor de categoria e não um diletante borboleteador. À margem destas peculiaridades, Barceló possuía uma memória de elefante e uma pedantaria que não lhe ficava atrás em porte ou sonoridade, mas se alguém sabia de livros estranhos, era ele. Naquela tarde, depois de fechar a loja, o meu pai sugeriu que fôssemos até ao café Els Quatre Gats, na Rua Montsió, onde Barceló e os seus compinchas mantinham uma tertúlia bibliófila sobre poetas malditos, línguas mortas e obras-primas abandonadas à mercê da traça.
Els Quatre Gats ficava a um pulo de casa e era um dos meus recantos predilectos de toda a Barcelona. Era ali que os meus pais se tinham conhecido no ano de 32, e eu atribuía em parte o meu bilhete de ida para a vida ao encanto daquele velho café. Dragões de pedra custodiavam a fachada encravada num cruzamento de sombras e os seus candeeiros de gás congelavam o tempo e as lembranças. No interior, as pessoas fundiam-se com os ecos de outras épocas. Guarda-livros, sonhadores e aprendizes de gênio compartilhavam mesa com a miragem de Pablo Picasso, Isaac Albéniz, Federico Garcia Lorca ou Salvador Dali. Ali, qualquer pobre diabo se podia sentir por uns instantes figura histórica pelo preço de um garoto.
Ora, Sempere – proclamou Barceló ao ver entrar o meu pai -, o filho pródigo. A que se deve a honra?
A honra deve-a ao meu filho Daniel, don Gustavo, que acaba de fazer uma descoberta.
Então venham sentar-se ao pé de nós, que há que celebrar esta efeméride – proclamou Barceló.
Efeméride? – sussurrei ao meu pai.
O Barceló só se expressa em esdrúxulas – respondeu o meu pai a meia voz. – Tu não digas nada, que ele ganha coragem.
Os companheiros de tertúlia abriram lugar para nós no seu círculo e Barceló, que gostava de se mostrar liberal em público, insistiu em convidar-nos.
Que idade tem o moço? – inquiriu Barceló, olhando-me de soslaio.
Quase onze anos – declarei.
Barceló sorriu-me, velhaco.
Ou seja, dez. Não ponhas anos a mais, mariola, que a vida lá tos porá. Vários dos companheiros de tertúlia murmuraram o seu assentimento.
Barceló fez sinais a um criado com aspecto iminente de ser declarado monumento histórico para que se aproximasse a fim de tomar nota.
Um conhaque para o meu amigo Sempere, do bom, e para o rebento um batido de leite, que tem de crescer. Ah, e traga umas lasquinhas de presunto, mas que não sejam como as de antes, hem?, que para borracha já temos a casa Pirelli – rugiu o livreiro.
O criado assentiu e partiu, arrastando os pés e a alma.
É o que eu digo – comentou o livreiro. – Como é que há-de haver trabalho, se neste país as pessoas não se reformam nem depois de mortas? Veja o Cid. É que não há remédio.
Barceló saboreou o seu cachimbo apagado, com o olhar aquilino a perscrutar com interesse o livro que eu segurava nas mãos. Apesar da sua fachada brincalhona e de tanto palavreado, Barceló era capaz de farejar uma boa presa como um lobo fareja o sangue.
Ora vejamos – disse Barceló, fingindo desinteresse. – Que me trazem vocês?
Dirigi um olhar ao meu pai. Ele assentiu. Sem mais preâmbulos, estendi o livro a Barceló. O livreiro pegou-lhe com mão conhecedora. Os seus dedos de pianista exploraram rapidamente textura, consistência e estado. Exibindo o seu sorriso florentino, Barceló localizou a página de edição e inspecionou-a com intensidade policial pelo espaço de um minuto. Os outros observavam-no em silêncio, como se esperassem um milagre ou autorização para respirar de novo.
Carax. Interessante – murmurou num tom impenetrável.
Estendi de novo a mão para recuperar o livro. Barceló arqueou as sobrancelhas, mas devolveu-mo com um sorriso glacial.
Onde é que o encontraste, garoto?
É um segredo – repliquei, sabendo que o meu pai devia estar a sorrir por dentro.
Barceló franziu o cenho e desviou o olhar para o meu pai.
Amigo Sempere, porque é o senhor e por todo o apreço que lhe tenho e em honra à amizade que nos une como a dois irmãos, fiquemo-nos por duzentas pesetas e não se fala mais nisso.
Isso vai ter de o discutir com o meu filho – aduziu o meu pai. – O livro é dele.
Barceló ofereceu-me um sorriso lupino.
Que dizes, pequenote? duzentas pesetas não é mau para uma primeira venda... Sempere, este seu miúdo há-de fazer carreira neste negócio.
Os companheiros de tertúlia riram-se da graça. Barceló olhou para mim satisfeito, puxando da sua carteira de pele. Contou os quarenta duros, que naquela época eram uma verdadeira fortuna, e estendeu-mos. Eu limitei-me a recusar em silêncio. Barceló franziu o cenho.
Olha que a cobiça é inevitavelmente um pecado mortal, hem? – aduziu.
Vamos, trezentas pesetas e abres uma caderneta de aforro, que na tua idade há que pensar no futuro.
Recusei de novo. Barceló lançou um olhar irado ao meu pai através do monóculo.
Não olhe para mim – disse o meu pai. – Eu aqui venho só como acompanhante.
Barceló suspirou e observou-me detidamente.
Vamos lá a ver, menino; mas o que é que tu queres?
O que eu quero é saber quem é Julián Carax, e onde posso encontrar outros livros que ele tenha escrito.
Barceló riu dissimuladamente e meteu de novo a carteira ao bolso.
Era, um acadêmico. Mas o que dá você a comer a este miúdo, Sempere? - gracejou.
O livreiro inclinou-se para mim com tom confidencial e, por um instante, pareceu-me entrever no seu olhar um certo respeito que lá não estava momentos atrás.
Vamos fazer um negócio – disse ele. – Amanhã, domingo, à tarde, passas pela biblioteca do Ateneo e perguntas por mim. Tu trazes o teu livro para que eu o possa examinar bem, e eu conto-te o que sei de Julián Carax. Quid pro quo.
Quid pro quê?
Latim, rapaz. Não há línguas mortas, mas sim cérebros amodorrados.
Parafraseando, significa que não há duros a quatro pesetas, mas que simpatizei contigo e te vou fazer um favor.
Aquele homem destilava uma oratória capaz de aniquilar moscas em voo, mas suspeitei de que, se queria averiguar alguma coisa sobre Julián Carax, mais me valeria ficar de boas relações com ele. Sorri-lhe beatificamente, mostrando o meu deleite com os latinórios e o seu verbo fácil.
Não te esqueças, amanhã, no Ateneo – sentenciou o livreiro. – Mas leva o livro, ou não há negócio.
De acordo.
A conversa desvaneceu-se lentamente no murmúrio dos restantes companheiros de tertúlia, derivando para a discussão de uns documentos encontrados nas caves do Escorial que sugeriam a possibilidade de don Miguel de Cervantes não ter sido senão o pseudônimo literário de uma peluda mulheraça toledana. Barceló, ausente, não participou no debate bizantino e limitou-se a observar-me do seu monóculo com um sorriso velado.
Ou talvez olhasse somente para o livro que eu segurava nas mãos.
Carlos Ruiz Zafón, in A sombra do vento

Cena carioca - VIII

Tô melhor obrigado. Um ministro chamado Tinoco me enche de esperança.
A frase da semana é do Sérgio Touro, diretamente do Bar da Maria:
- Meu irmão, tá tanto calor que quando eu abro o chuveirinho do bidê pra refrescar as partes, sem exagero, dá pia ouvir o tssssssssss...
Sei que vocês não vão acreditar, mas eu fui à praia. Juro. Dez da matina. Peguei o estojo de primeiros-socorros, vesti o colete à prova de balas, consertei minha máscara de oxigênio pra engarrafamento no Alto da Boa Vista e fui me divertir.
Porre no ar. Não me ofereci pra dirigir porque não sei. Nunca tive competência pra meter o chinelo naqueles pedais sem me abaixar pra conferir. Pior que a batida é a mudança no olho direito.
O compositor Moacyr Luz, que pilotava o Sinca em direção à Barra, parou umas dezessete vezes pra reabastece:. Vimos um 233 em cima de uma árvore e ajudei uma senhora em trabalho de parto: menina, quase quatro quilos, uma gracinha. Participei, na qualidade de alvo, de um tiroteio entre motoqueiros. Perto do Itanhangá, um guarda levou uma tremenda surra de onze assaltantes e revidou com a frase “Dessa vez passa, mas vocês estão na minha mira”. Um doberman num bugre vermelho enfiou a cabeça na janela do nosso carro e estraçalhou meus óculos celebrities.
Bom, chegamos! A barraca do Pepê não é tão animada assim. Pouca gente, apesar de o relógio marcar apenas 23 horas.
A vida noturna do Rio não é mais a mesma.
Aldir Blanc, in Brasil passado a sujo

terça-feira, 28 de agosto de 2018

O disco de MPB esnobado em 1973 que virou cult no rap americano atual

DJ Nuts segura álbum 'Arthur Verocai', que virou 'moda' décadas após seu lançamento em 1973; 'Perceberam que, além de ser um discaço, ele era raro'

Em agosto do ano passado, durante um garimpo esporádico em um bazar de bairro em Osasco, na Grande São Paulo, o estudante Pedro (nome fictício) não acreditou quando viu, intacto dentro de uma caixa perdida discos de vinil, o LP Arthur Verocai, gravado pelo maestro e arranjador carioca de mesmo nome e lançado pela extinta Continental no final de 1972.
Extasiado pelo achado, ele logo se lembrou de que não poderia transmitir afobação ao dono do pequeno estabelecimento que, aparentemente, não sabia que, três anos antes, o mesmo disco fora arrematado em um pregão do eBay por US$ 5,1 mil (quase R$ 20 mil) — o valor mais alto pago por um LP brasileiro na história do site americano de leilões.
O homem disse a Pedro que não venderia os LPs avulsos, mas que aceitava R$ 100 pela caixa inteira. Além do vinil de Verocai, ela tinha ainda outra raridade: o primeiro álbum da dupla Jaime e Nair, gravado em 1974 — também objeto de disputa entre colecionadores brasileiros e do exterior.
Ninguém pode saber que eu tenho esse disco do Arthur Verocai, porque não teria sossego se soubessem”, conta ele que, por isso, pediu para não ter seu nome verdadeiro revelado nesta reportagem.
Poucos meses depois de comprar o disco, Pedro recebeu uma das poucas ofertas para vendê-lo: o filho de Arthur, o também músico Ricardo Verocai, prometeu pagar R$ 1 mil pelo LP, mas o estudante recusou a proposta. “Se faço isso não encontro outro nunca mais”, afirma.
A preocupação faz algum sentido: por quatro décadas, as poucas cópias originais do vinil de Verocai eram encontradas em bazares semelhantes ao que Pedro comprou o seu. Mesmo quando foi lançado, no começo de 1973, o LP vendeu tão pouco que a Continental logo o tirou das lojas para encher as prateleiras com mais versões do disco dos Secos & Molhados, sensação daquele ano.
Verocai, que ganhava a vida como arranjador e maestro, ainda teve que conviver com certo desprezo dos clientes pela obra encalhada. "Quando me davam algum trabalho, me diziam: 'Tenta não repetir aquela loucura que você fez no seu disco, hein?'", conta hoje o músico, em entrevista à BBC News Brasil.
Matéria completa aqui.

Uma noite perdida para Mandovi

Em cada viagem de volta Geminiano trazia uma ou duas pessoas na carroça, os passageiros saltavam no largo ou numa rua e ficavam parados numa esquina ou na sombra do coreto, muito interessados nas pessoas que passassem, mas apenas para olhar; não falavam com ninguém, não cumprimentavam nem gostavam de responder cumprimento, se respondiam era de má vontade, para dentro. Até padre Prudente, que uma vez passou por dois desses homens e ingenuamente olhou-os esperando uma demonstração qualquer de respeito, recebeu de volta um olhar fixo, que não soube precisar se era de atrevimento ou de espanto.
As crianças sofriam muitas provocações desses homens. Um certo Mandovi, menino que vendia cigarros numa caixinha de sapatos, era uma vítima constante. Da primeira vez, tomando alguns daqueles homens por possíveis compradores, ele chegou-se e ofereceu a mercadoria. Um dos homens despachou-o com a mão, mas outro achou de investigar o que havia na caixa; só que em vez de perguntar, ou pedir para ver, como fazia toda pessoa nova na cidade, o homem foi destampando a caixa e soltando a tampa no chão na maior sem-cerimônia. Mandovi já não gostou, e para mostrar que não tinha gostado puxou a caixa do alcance do homem e abaixou-se para recuperar a tampa, ao mesmo tempo pensando se continuaria dando atenção àquela gente ou se a cortaria de vez. Quando se ergueu, passando a tampa na roupa para limpar a terra, sentiu-se agarrado pela gola, enquanto outra mão tomava a caixa.
Que poderia ele fazer, tão pequeno e magrinho, contra dois homens enormes, de barba na cara, se bem que um deles parecesse não participar da curiosidade do outro?
O homem segurou a caixa com a mão esquerda, ajudando com o corpo, com a direita retirou uma rodilha de cigarros, exatamente a maior.
Isso o que é? — perguntou, rodando a rodilha na mão como se não soubesse, e sem olhar para o menino.
Mandovi teve vontade de responder que era pé de moleque, ou chouriço-pra-fazer-feitiço, mas procurou paciência e explicou direito. Mas o homem não estava interessado na resposta, e tentava arrancar com os dentes a linha que amarrava a rodilha.
Não tira que vai espandongar tudo — avisou Mandovi já tarde. O homem já tinha arrebentado a linha de um lado, os cigarros aproveitaram para se livrar do arrocho, se abriram em flor, caíram por todos os lados em volta da mão do homem e se espalharam no chão.
Agora paga. Desmanchou, paga — disse Mandovi, acreditando estar aplicando uma lei lógica que qualquer pessoa entenderia. Mas o homem soltou uma gargalhada de jogar o corpo para trás, e nisso largou a caixa, que caiu de lado e derramou as outras rodilhas no chão.
Mandovi esperou o homem acabar de achar graça; mas vendo que isso ia demorar um pouco, aproveitou o tempo para apanhar as rodilhas inteiras, deixando os cigarros soltos, que no seu entender não lhe pertenciam mais. Ainda rindo, o homem saiu andando com passos de bêbedo, pisando em cigarros, machucando rodilhas, e propositalmente ou não deu uma bicanca na caixa. Mandovi parou com as duas mãozinhas no chão, olhou e viu dois homens de muitas pernas, andaimes, vigas móveis tremendo, indo embora.
Sem pensar no que fazia, ele apanhou umas coisas no chão, pedras, paus, sabugos e foi jogando a esmo, com raiva, os baques fofos, os gritos, os homens correndo, as pedras não alcançando mais.
Quando chegou em casa, Mandovi pensou que alguém tivesse adoecido de repente, ou que o pai tivesse se machucado na oficina: muita gente na varanda conversando, perguntando, dando opinião. Mandovi já entrou assustado, a mãe correu para ele, abraçou-o:
Com efeito, meu filho! Como você foi fazer uma coisa dessas?
O pai separou-se de um grupo que conversava diante da janela e falou enérgico:
Mandovi, venha na oficina comigo.
Mandovi deixou a caixa de cigarros em cima da mesa, olhou para a mãe, não tomou conhecimento das outras pessoas. O pai chamou de novo, ele acompanhou-o pela escadinha do quintal.
Ninguém quis sair imediatamente; se seu Apolinário ia castigar o filho, eles queriam pelo menos ouvir os gritos. A mãe foi para a janela da frente para não ouvir, desejando que o marido não exagerasse no castigo, afinal de contas qual o menino que não faz uma travessura de vez em quando? Uma vizinha acompanhou-a para consolar, ela não escutava as palavras de consolo, estava de atenção voltada para a oficina ali ao lado da casa, não demoraria muito e Mandovi estaria gritando debaixo das chicotadas. Apolinário quando batia não alisava nem escolhia lugar, e ainda tinha a mania de bater com aquela tira de couro tão grossa e tão dura.
A vizinha falava, a mãe ia ficando impaciente, os gritos não vinham, alguma coisa fora do comum devia estar acontecendo.
Foi um susto para a mãe quando Mandovi apareceu ao lado dela já explicando por que tinha voltado com quase todo o cigarro.
Você disse a seu pai? — ela perguntou depois de ouvir as razões.
Disse sim senhora.
E ele não fez nada?
Não senhora. Disse que eu fiz o que devia.
A alegria da mãe nasceu e morreu ali mesmo na janela. Morreu quando ela compreendeu o motivo de tanta visita fora de hora: aquela gente esperava uma reação dos homens, e estava ali para assistir. Os homens não iam levar pedradas na rua e voltar mansinhos para casa. Apolinário dando razão a Mandovi agravou a situação, porque sabendo que o menino não tinha sido castigado, os homens iam querer eles mesmos aplicar o castigo, e sabe-se lá de que maneira.
Pelo resto do dia a casa esteve cheia de gente, uns se cansavam e iam embora, outros iam chegando de fresco, todo mundo se apertando na varanda pequena como para beijar o divino em pouso de folia, aquela zoada, gente se espremendo contra os móveis, ameaçando derrubar o pote de água que descansava num cepo alto num canto, a toda hora era preciso alguém protegê-lo do balanço, mas um pouco de água sempre derramava, fazendo lama no chão; gente pisando os pés uns de outros, pedindo desculpa e pisando de novo. Uma hora lá seu Apolinário perdeu a paciência e resolveu acabar com a furupa, bateu palma para chamar atenção e mandou que esquipasse todo mundo, disse que ali não tinha morrido ninguém por enquanto, graças a Deus, que fossem sacudir o corpo em algum serviçal como ele estava fazendo desde muito cedo — e foi pegando os chapéus que estavam nos cabides, em cima da mesa, no parapeito das janelas, na mão dos donos e pondo na cabeça das pessoas, às vezes o chapéu de um na cabeça de outro, e empurrando gente pelo corredor afora, cercando com os braços os que ameaçavam voltar.
A mulher achou boa essa providência, mas ficou envergonhada porque no meio do pessoal estavam umas amigas dela que não acharam jeito de ficar depois do que Apolinário tinha acabado de dizer.
Conheceram, papudos! Agora você pode fazer a janta em paz — disse Apolinário à mulher. — Se precisar de mim, estou na oficina. E outra coisa, Serena. Convém não deixar o Mandovi sair mais hoje.
Dona Serena gostava daquele jeito despachado e confiante do marido, mas achava que ele estava sendo despreocupado demais em hora de tanta ameaça. Pensando e pensando nisso, ela se distraiu na cozinha e cometeu uma série de deslizes — queimou a mão numa panela, deixou o arroz esturrar, esqueceu a chaleira fervendo até a água transbordar e quase apagar o fogo. Ela não esquecia os homens da tapera e os males que eles pudessem fazer.
Quando Apolinário veio jantar, ela disse com muito jeito que seria melhor ele não sair de casa à noite.
Por que agora? Eu não estou de resguardo.
Eu morro de medo por causa disso que Mandovi fez.
Tem nada não. O que ele fez foi bem feito.
Meu medo é que os homens queiram tirar vingança.
Tiram não. Se vierem arrastando mala, saem com ela espandongada.
Em vez de se acalmar com a bravata do marido, dona Serena mais se alarmou:
Olhe lá, Apolinário. Tenho muito medo.
Não tem motivo. Quem tem razão tem salvação.
Tomara que seja.
Mas Apolinário acabou fazendo o sacrifício de não dar a sua voltinha de toda noite. Ao escurecer foi à oficina, apanhou um malho dos mais leves e trouxe para casa, e enquanto Mandovi puxava água do poço para encher as vasilhas, e dona Serena grosava palha para cigarros, ele ficou um pouco na janela fumando e respondendo os cumprimentos dos passantes; depois foi para a varanda e deitou-se enganchado na rede, com o malho ao alcance da mão. Naquela noite Mandovi ficou proibido de brincar no largo.
Mas, mãe… que mal faz?
Convém não. Falha hoje. Brinquedo não é serviço urgente.
Se eles vierem, eu corro. Ninguém me pega na corrida.
Por mim não vai. Só se seu pai deixar.
Chamado a opinar, Apolinário apoiou a mulher:
Vai não. Sua mãe já disse, está resolvido. Pegue seu livro, vá estudar.
Não tinha jeito. Aquela noite estava mesmo perdida para Mandovi.
José J. Veiga, in A noite dos ruminantes