Duas dinamarquesas
conversavam à beira da piscina de um hotel-fazenda em Araraquara;
falavam e apontavam para o alto, onde as folhas de uma
palmeira-imperial pareciam tocar as nuvens.
Claro que não
entendi uma palavra da conversa, mas intuí que as escandinavas
estavam fascinadas pela altura da palmeira, cujo tronco afinava
sutilmente em direção ao topo. O exato desenho da palmeira é mais
um mistério da natureza. Deixei a Dinamarca e andei pela antiga
fazenda de café, visitei seu modesto museu, onde vi máquinas
incríveis, que datam da primeira revolução industrial em São
Paulo; depois entrei na tulha, na capela e imaginei um cafezal no
horizonte onde, hoje, só se veem canaviais e laranjeiras.
Ia dormir num
quarto onde haviam dormido colonos da antiga fazenda, um quarto
modesto, com um abajur pequeno demais para quem quer ler. Quando
voltei para o gramado, as dinamarquesas ainda conversavam com a
palmeira; de repente uma delas deu um grito, e esse som eu entendi,
porque o grito é universal. A pobre mulher estava paralisada diante
de um lagarto enorme, que saíra de sua toca e agora tentava
rastejar, mas as patas escorregavam na lajota lisa. A outra
dinamarquesa puxou sua amiga pelos braços, ambas correram com passos
de viking e, em poucos segundos, as quatro pernas alcançaram a
capela no outro lado do hotel.
Temi pelo réptil
assustado, um pobre réptil brasileiro, que nascera e crescera no
sertão paulista. Agitava com rapidez e nervosismo o rabo, em gestos
alucinantes de defesa. Tentei acalmá-lo, mas ele se apavorou,
deslizou na lajota, caiu na piscina, mergulhou, nadou bravamente e
foi vencido pela exaustão.
Era um lagarto
velho e obeso, que ia afogar-se na água clorada. Com um galho,
ofereci-lhe ajuda. Aceitou. E, quando o trouxe à terra firme, ele me
encarou com olhinhos tristes. Era um teiú-açu, tão presente na
minha infância. Enquanto eu observava o dorso molhado, da cor de
mármore encardido, me lembrei das brincadeiras nos balneários de
Manaus, das moças que morriam de medo dos camaleões que se
confundiam com a folhagem e chispavam entre pernas morenas. Recordei
por algum tempo essas pernas, que agora eram reais, tão reais que
quase podia tocá-las. O lagarto ainda me encarava tristemente,
talvez soubesse que a existência dele me conduzia a um passado
distante.
Então me afastei
do réptil envelhecido, entrei no quarto, peguei um livro e sentei na
cadeira da varandinha. Retomei a leitura de um romance, o mesmo que
havia lido em 1973 ou 74; agora parecia outro livro, porque 36 anos é
tempo suficiente para criar outro leitor. A leitura avançava
lentamente, a zoeira dos pássaros não me incomodava, a loucura do
personagem pregando no púlpito de igrejas no sul dos Estados Unidos
era verdadeira, ou assim parecia. De repente a realidade interrompeu
a imaginação: uma voz estridente surgiu do quarto de um hóspede: a
voz de um pastor pregando num programa de TV.
Bradava palavras
rancorosas contra o demônio, o próprio pastor parecia possuído,
mas seu transe soava muito mais falso e superficial do que o do
personagem do romance.
Pedi ao hóspede
para que diminuísse o volume do som ou fechasse a porta do quarto,
mas o homem me ignorou. Fechei o livro e fui ao encontro do lagarto:
permanecia no mesmo lugar, talvez traumatizado pelo mergulho na
piscina. Ergueu a cabeça para mim e conversamos em silêncio, ou
pensamos coisas distintas. Ele, ainda ofegante, talvez sonhasse com a
paz em sua toca. Eu apenas recordava pernas assustadas e belas na
margem de um rio de águas límpidas, numa época em que não se viam
pastores na TV e todos nós podíamos pecar e ler sem ouvir insultos
histéricos contra o diabo.
Milton Hatoum,
in Um solitário à espreita
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