Chama-se Pirapora,
o meu corrupião; eu o trouxe lá da beira do São Francisco muito
feio, descolorido e sem cauda. Consegui uma licença escrita para
poder conduzi-lo; apesar disso, houve um chato da companhia aérea
que implicou com ele na baldeação em Belo Horizonte. Queria que ele
viesse no compartimento de bagagens, onde certamente morreria de frio
ou de tédio. Houve muita discussão, da qual Pirapora se aproveitou
para conquistar a amizade de um negro carregado; limpando-lhe
carinhosamente a unha com o bico. Encantado com o passarinho, esse
carregador me ajudou a ludibriar o exigente funcionário, e fizemos
boa viagem.
A princípio eu me
preocupava em saber o que o bicho comia. Hoje me pergunto o que ele
não come. Carne de vaca, verduras, tomate, laranja, goiaba, miolo de
pão, mamão, sementes, gema de ovo, palitos de fósforos e revistas
ilustradas, praticamente tudo ele come. É mesmo um pouco
antropófago, porque devora qualquer pedacinho de pele da mão da
gente que descobre. Os alimentos mais secos ele os põe n’água e
faz uma espécie de sopinha fria. Come e descome com uma velocidade
terrível; tem um metabolismo alucinado, mas respeita rigorosamente a
limpeza do canudo de palha em que mora. Adora tudo o que brilha,
pedras preciosas ou metais, e fica bicando essas coisas com uma
teimosia insensata, como a lamentar que não sejam comestíveis.
Passa horas brincando com um pedaço de barbante, mas isso parece que
lhe faz um pouco mal aos nervos. Peço às damas visitantes que
retirem os anéis quando se aproximam da gaiola.
Agora ele está de
rabo comprido, penas negras lustrosas e penas alaranjadas vibrantes
de cor. Está realmente bonito, voa um pouco pela casa todo dia e
toma banho duas vezes ao dia. Enfim, tenho todos os motivos para me
orgulhar de meu corrupião; e devia estar contente.
Mas a verdade é
muito outra. Há um pequeno drama de família; estamos de mal.
Conheço muitas
histórias de corrupião; corrupião que assobia o Hino Nacional;
corrupião que só gosta de mulher, não tolera homem; corrupião que
quando o dono da casa chega ele assobia até que abram a gaiola e ele
pouse no ombro do homem; corrupião que passeia pelo bairro inteiro e
volta para casa ao escurecer, etc.
O meu não. Talvez
a culpa seja minha, que o educo mal. Sei como deveria proceder com
ele: movimentos sempre lentos, chantagem na base do miolo de pão,
não lhe dando comida demais para que ele venha comer na mão; certa
mistura de disciplina e carinho, sistema de prêmios e castigos.
Enfim, aquele negócio dos reflexos condicionados.
Ele já estava
bastante meu amigo quando cometi o primeiro erro; e ele reagiu.
Afastava-se de mim; se eu aproximava o dedo, ele o bicava com força.
Despeitado com esse tratamento, eu devo ter sido um pouco brusco. Um
dia em que ele não queria de jeito nenhum sair da gaiola eu o
agarrei e o trouxe para fora à força. Não gostou.
O pior é que tomei
gosto em irritá-lo. Estalo os dedos sobre sua cabeça, o que o faz
emitir estranhos grunhidos, enchendo o papo de vento, esticando o
pescoço e dando grandes assobios; fica parecendo um galo de briga;
uma gracinha. Mas com essas provocações ele foi, devagar,
devagarinho, criando um certo ódio de mim.
Não, ainda não
será ódio. De outras vezes ele já levou um dia inteiro, até dois,
sem me dirigir a palavra e mesmo sem me olhar; mas logo o rancor
sumiu de sua alminha leve, e voltamos às boas. Desta vez ele está
há quatro dias completamente hostil, e minha presença o incomoda
visivelmente. Por acinte trata bem qualquer pessoa estranha, o
rufião. Mas creio que sua amizade é um bem ainda recuperável.
O pior é que eu
digo essas coisas assim, mas no fundo sou um pouco rancoroso, e estou
criando uma certa mágoa desse bicho ingrato que eu trouxe da roça
para a capital da República, até cheguei a ir à feira só para
comprar comidinhas melhores para ele, dei gaiola grande e bonita, uma
vez gastei oitenta cruzeiros de táxi só para vir em casa livrá-lo
de uma chuva súbita. Não, não sei se ainda lhe tenho a mesma
estima. Nosso último incidente foi há três dias, e ele ainda hoje
à tarde me tratou com uma antipatia suprema e ainda por cima se
desmanchou em graça e carinhos com o boy que veio buscar a crônica.
Acho que vou dar
esse corrupião — ou despedir esse boy.
Rubem Braga,
in Ai de ti, Copacabana
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