Nas noites do verão
parisiense, turistas de todas as latitudes passeiam entre a Place de
la Contrescarpe e a igreja de Saint-Médard. Nessa área — dividida
pela não menos festiva Rue Mouffetard — as mesinhas dos
restaurantes são separadas por meio palmo, de modo que você vê o
que os vizinhos comem e bebem e, mesmo sem querer, ouve conversas
alheias. Por sugestão de um vizinho — um turista italiano —
optei por uma orelha de elefante, nome popular de um bife à
milanesa.
Meu vizinho de mesa
era casado com uma professora argelina, ambos moravam em Montreal e
passavam as férias em Paris. Turistas são seres solitários. Talvez
entediados pela solidão, puxaram conversa comigo e com minhas duas
amigas francesas. Falaram da beleza de Montreal, da literatura
bilíngue do Canadá e, quando a argelina mencionou o nacionalismo do
Québec, ouvimos uma voz masculina dizer em francês: “Sou um jovem
sem mãe, sem país…”.
Não sei se o
clochard era órfão e apátrida, mas não parecia tão jovem.
Pediu ao garçom um pedaço de baguete com molho de tomate, depois
perguntou ao nosso vizinho de onde ele era.
“Turim”, disse
o italiano.
“Turim?”, riu o
clochard. “É uma das cidades iluminadas da Itália. Não me
refiro à Fiat, o farol da indústria italiana. Falo dos poetas e
escritores.”
“Você conhece a
obra de algum desses poetas?”, perguntou o turista.
O clochard
recitou em italiano uns versos, cujo autor nosso vizinho logo
reconheceu. Depois disse em alemão umas frases que uma das minhas
amigas entendeu, assombrada com a pronúncia perfeita do vagabundo.
Ela cochichou: “Nunca vi um clochard citar de cor e no
original Cesare Pavese e Nietzsche”.
Depois ele disse
que era duro viver na rua, duríssimo dormir durante o inverno.
“O inverno sem
abrigo é o inferno”, disse o clochard, abrindo a boca
desdentada e soltando um bafo de vinho barato, que se misturou ao ar
quente da noite. Ele nos olhou com tanta tristeza que eu perdi a fome
e afastei a orelha de elefante.
“Onde você leu a
obra desses escritores?”, perguntou minha amiga germanista.
“Na escola”,
ele respondeu. “E numa biblioteca de Montrouge.”
“Você fala
árabe?”, perguntou a argelina.
“O árabe vulgar,
sim”, ele disse. “O árabe falado nas ruas de Paris e Marselha…
Mas sou incapaz de ler o árabe clássico, a língua de Ibn Quzman e
dos grandes poetas da Andaluzia. Vocês sabem, a frustração é um
atributo do ser humano… Não sabemos tudo, não podemos conhecer
tudo.”
“Mas você não
devia estar na rua”, disse o italiano. “Quero dizer, morando na
rua. Você podia ensinar línguas estrangeiras…”
“De jeito nenhum,
monsieur. Aprendi seis línguas para sobreviver…Para minha alma
sobreviver, e não para ensinar ou trabalhar.”
Nenhum de nós
duvidou.
“Mas por que você
mora na rua?”, perguntou a argelina.
“Não há outro
lugar para viver, madame. O albergue é um horror, a gente convive
com pessoas sem nenhum valor moral. Não posso alugar sequer um
quarto, por isso vivo na rua. Algumas pessoas ainda me dão comida e
moedas. No inverno sofro muito, mas quem não sofre neste mundo?”
“E como você foi
parar na rua?”
Ele agradeceu ao
garçom o pão com molho de tomate e aceitou uma taça de Cahors que
o vizinho italiano lhe ofereceu.
“É uma longa
história”, disse o clochard. “Vocês têm tempo para
ouvi-la?”
“A noite toda”,
eu disse, sem consultar os vizinhos e as amigas.
Ouvimos a história,
que era de fato longa, tão longa que sobreviveu à sobremesa, aos
queijos, ao café e ao licor. O restaurante já estava fechado e os
três garçons italianos, de pé, ouviam a voz do clochard.
“E como sua
amante morreu?”, perguntou minha outra amiga, que até aquele
momento não dissera nada.
“Nos meus
braços”, disse o clochard. “A maioria das pessoas tem
várias histórias de amor para contar. Eu tenho apenas essa, que foi
uma verdadeira paixão.”
Ele nos olhou, um
por um, e disse: “Não me olhem assim. Só as crianças pobres
merecem compaixão. Ainda sobrou vinho?”.
Milton Hatoum,
in Um solitário à espreita
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