— Não viu o
letreiro: “É expressamente proibida a entrada”?
— Desculpe, mas…
O senhor não está percebendo?
A bengala branca
palpava terreno. Era cego. Um rapaz tão bem-apanhado! Duas ou três
funcionárias aproximaram-se, enquanto o servidor que fizera a
pergunta, encabulado, ia dando o fora. Os óculos pretos do ceguinho
(todo cego é ceguinho, no coração da gente) ocultavam-lhe
pudicamente o mal. Cercado de moças, pareceu mais à vontade, e
dirigiu-se a uma delas, por acaso a mais bonita:
— Sei que não é
permitido, peço mil desculpas… A necessidade me obriga a isso.
Não, não é auxílio. Eu vendo blusas, soutiens, essas coisinhas,
compreende?
As moças
entreolharam-se, o regulamento não admite comércio em repartição,
ainda mais repartição da Fazenda. Mas, pode haver regulamento para
ceguinhos? E aquele era tão bem-apanhado. E há sempre necessidade,
desejo ou curiosidade de uma blusa nova, um baby-doll. Todas estavam
precisadas de alguma coisa, todas estavam, por assim dizer, nuas.
Então a moça a
que ele recorrera tomou a iniciativa de comprar. Os homens fingiram
não perceber a infração. O ceguinho abriu a valise de avião e foi
tirando seus artigos. Gabava-lhes a renda finíssima, a qualidade da
espuma de látex, o elástico substituível. Pedia licença para
estender a blusa no peito das moças, para que vissem o efeito.
Compraram tudo de
que precisavam ou não, ele agradeceu à madrinha — porque a essa
altura já a considerava madrinha:
— A senhorita me
deu sorte. Santa Luzia que a faça muito feliz!
E, apertando-lhe o
braço, com efusão:
— Posso pedir
mais uma caridade?
Podia. Era
acompanhá-lo a outras salas. Ele temia ser mal recebido outra vez.
Com o seu anjo da guarda não haveria perigo.
E lá se foram, ela
guiando, ele vendendo. Que confiança adquirira rapidamente na moça!
Ia amparado a seu braço, talvez com um pouco de exagero. Ela ia
pensar isso — mas arrependeu-se antes de pensar. Um pobre ceguinho!
Quando extirparás de teu coração, Adelaide, a erva má da
suspeita?
Pois com tanto
cuidado, ainda assim ele tropeçou em alguém no corredor, e teve de
agarrar-se a ela, com expressão ansiosa no rosto. Sua respiração
era apressada, tinha as mãos quentes. Que susto! Ficou assim algum
tempo, como aninhado em sua benfeitora. Não seria tempo demais? Ela
ia de novo achar esquisito. Seria mesmo cego, o rapaz? Aqueles óculos
indevassáveis… Conteve-se, antes de sentir-se mais uma vez uma
infame pecadora:
— Não é melhor
o senhor ir embora? Deve estar cansado, já vendeu bastante…
Ele entendia que
não, estava disposto a vender até o fim do expediente, com uma fada
a protegê-lo, não é todos os dias que se encontra uma fada no
caminho. Ela o foi encaminhando para perto do elevador, dizendo-lhe
que não era fada coisa nenhuma, era uma simples datilógrafa
mensalista, ele protestava, queria de novo sentir-se aconchegado,
defendido, gabava-lhe o perfume… O elevador abriu-se. Com suavidade
e firmeza ela o impeliu para dentro, pediu ao cabineiro que tivesse
cuidado com o ceguinho — se é que ele era mesmo ceguinho.
Carlos Drummond
de Andrade, in 70 historinhas
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