Ivo viu a uva; eu
vi a viúva. Ia passando na praia, vi a viúva, a viúva na praia me
fascinou. Deitei-me na areia, fiquei a contemplar a viúva.
O enterro passara
sob a minha janela; o morto eu o conhecera vagamente; no café da
esquina a gente se cumprimentava às vezes, murmurando “bom-dia”;
era um homem forte, de cara vermelha; as poucas vezes que o encontrei
com a mulher ele não me cumprimentou, fazia que não me via; e eu
também. Lembro-me de que uma vez perguntei as horas ao garçom, e
foi aquele homem que respondeu; agradeci; este foi nosso maior
diálogo. Só ia à praia aos domingos, mas ia de carro, um Citroen,
com a mulher, o filho e a barraca, para outra praia mais longe. A
mulher ia às vezes à praia com o menino, em frente à minha
esquina, mas só no verão. Eu passava de longe; sabia quem era, que
era casada, que talvez me conhecesse de vista; eu não a olhava de
frente.
A morte do homem
foi comentada no café; eu soube, assim, que ele passara muitos meses
doente, sofrera muito, morrera muito magro e sem cor. Eu não dera
por sua falta, nem soubera de sua doença.
E agora estou
deitado na areia, vendo a sua viúva. Deve uma viúva vir à praia?
Nossa praia não é nenhuma festa; tem pouca gente; além disso vamos
supor que ela precise trazer o menino, pois nunca a vi sozinha na
praia. E seu maiô é preto. Não que o tenha comprado por luto; já
era preto. E ela tem, como sempre, um ar decente; não olha para
ninguém, a não ser para o menino, que deve ter uns dois anos. Se eu
fosse casado, e morresse, gostaria de saber que alguns dias depois
minha viúva iria à praia com meu filho — foi isso o que pensei,
vendo a viúva. É bem bonita, a viúva. Não é dessas que chamam a
atenção; é discreta, de curvas discretas, mas certas. Imagino que
deve ter 27 anos; talvez menos, talvez mais, até 30. Os cabelos são
bem negros; os olhos são um pouco amendoados, o nariz direito; a
boca um pouco dentucinha, só um pouco; a linha do queixo muito
nítida.
Ergueu-se, porque,
contra suas ordens, o garoto voltou a entrar n’água. Se eu fosse
casado, e morresse, talvez ficasse um pouco ressentido ao pensar que,
alguns dias depois, um homem — um estranho, que mal conheço de
vista, do café — estaria olhando o corpo de minha mulher na praia.
Mesmo que olhasse sem impertinência, antes de maneira discreta, como
que distraído.
Mas eu não morri;
e eu sou o outro homem. E a ideia de que o defunto ficaria ressentido
se acaso imaginasse que eu estaria aqui a reparar no corpo de sua
viúva, essa ideia me faz achá-lo um tolo, embora, a rigor, eu não
possa lhe imputar essa ideia, que é minha. Eu estou vivo, e isso me
dá uma grande superioridade sobre ele.
Vivo! Vivo como
esse menino que ri, jogando água no corpo da mãe que vai buscá-lo.
Vivo como essa mulher que pisa a espuma e agora traz ao colo o garoto
já bem crescido. O esforço faz-lhe tensos os músculos dos braços
e das coxas; é bela assim, marchando com a sua carga querida.
Agora o garoto fica
brincando junto à barraca e é ela que vai dar um mergulho rápido,
para se limpar da areia. Volta. Não, a viúva não está de luto, a
viúva está brilhando de sol, está vestida de água e de luz.
Respira fundo o vento do mar, tão diferente daquele ar triste do
quarto fechado do doente, em que viveu meses. Vendo seu homem se
finar; vendo-o decair de sua glória de homem fortão de cara
vermelha e de seu império de homem da mulher e pai do filho, vendo-o
fraco e lamentável, impertinente e lamurioso como um menino, às
vezes até ridículo, às vezes até nojento...
Ah, não quero
pensar nisso. Respiro também profundamente o ar limpo e livre. Ondas
espoucam ao sol. O sol brilha nos cabelos e na curva do ombro da
viúva. Ela está sentada, quieta, séria, uma perna estendida, outra
em ângulo. O sol brilha também em seu joelho. O sol ama a viúva.
Eu vejo a viúva.
Rubem Braga,
in Ai de ti, Copacabana
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