Só uma palavra
descrevia a vida de Antônio. Foi a palavra que ele usou quando viu o
tamanho da fila do ônibus.
- Que merda!
Estava mal
empregado, mal casado, mal tudo. E agora precisava chegar em casa e
dizer à mulher que não atingira sua cota de vendas para o mês e
que não podiam contar com o extra para pagar a prestação da
geladeira nova. E que ela não o incomodasse.
Foi quando sentiu
que encostavam a ponta de um cano nas suas costas. E uma voz
igualmente dura disse no seu ouvido:
- Entra no carro.
Entrou no carro. O
homem que metera a arma nas suas costas entrou em seguida. Antônio
ficou espremido entre ele e outro homem. Que parecia ser quem dava as
ordens.
- Vamos, vamos -
disse o outro homem.
O carro arrancou.
Eram quatro. Dois na frente. Os quatro bem vestidos. Quando conseguiu
falar, Antônio perguntou:
- O que é isto?
O silêncio.
- É sequestro?
Não podia ser
sequestro. Ele era um insignificante. Não tinha dinheiro. Não tinha
nada. Iam querer sua geladeira nova? Assalto também não era. Não
pareciam interessados no que ele tinha nos bolsos (chaveiro, o
dinheiro contado para o ônibus, uma fração de bilhete da loteria,
as pastilhas para azia). Não pareciam interessados em nada. Olhavam
para a frente e não falavam.
- Vocês não
pegaram o homem errado, não?
O homem da
esquerda, o que parecia estar no comando, finalmente olhou para
Antônio. Disse:
- Fica quietinho
que é melhor pra todo mundo.
- Mas por que me
pegaram?
O homem sentado no
banco da frente olhou para trás. Estava sorrindo. Não era um
sorriso amigável.
- Você sabe por
quê.
E de repente os
quatro estavam falando. Cada um dizia uma frase, como se tivessem
ensaiado.
- Você está sendo
observado desde o aeroporto em Genebra.
- A Margaret, que
você levou pro quarto, trabalha para o Alcântara. Foi ela quem nos
deu o local do seu encontro com o Frankel, hoje.
- Foi a noite mais
cara da sua vida, Falcão.
- Espera um
pouquinho. Meu nome não é Falcão.
- Claro que não.
- Sabemos até que
vinho você e a Margaret tomaram no jantar.
- A truta estava
boa, Falcão?
- Meu nome não é
Falcão! -
E a Margaret, que
tal? Comparada com a truta?
- Eu posso provar
que não sou o Falcão. É só olharem minha identidade!
- Nos respeite,
Falcão. Nós estamos respeitando você.
- Mas é verdade!
Vocês pegaram o homem errado! Olhem aqui... Antônio começou a
tirar a carteira do bolso de trás mas o homem à sua direita o
deteve. O da esquerda falou, num tom magoado:
- Não nos
menospreze assim, Falcão. Só porque você é quem é, não é razão
para nos menosprezar. Por favor.
- Mas olhem a minha
identidade!
- Você tem mil
identidades. O Alcântara nos avisou: não deixem ele enrolar vocês.
O Falcão é uma águia.
- O Alcântara
admira muito você, Falcão. Diz que se você não fosse tão bom,
não seria preciso matá-lo.
Antônio deu uma
risada. Na verdade, foi mais um latido. Seguido de um longo silêncio.
Depois:
- Vocês vão me
matar?
- Você sabe que
sim.
Novo silêncio. Os
quatro homens também pareciam subitamente tomados pela gravidade da
situação. O da frente olhou para Antônio e sorriu, desta vez sem
desdém.
Depois virou-se
para a frente e sacudiu a cabeça. Como se recém-tivesse se dado
conta do que ia acontecer dali a pouco. Iam matar o Falcão. Estavam
vivendo os últimos instantes de vida do grande Falcão. E Antônio
sentiu uma coisa que nunca sentira antes. Uma espécie de calma
superior. Nunca na sua vida participara de uma coisa tão solene.
Quando falou, sua voz parecia a de outra pessoa.
- Por quê?
- O senhor sabe por
quê.
- Onde?
Alguns segundos de
hesitação. Depois:
- Na ponte.
O motorista
lembrou-se:
- O seu Alcântara
mandou perguntar se o senhor queria deixar recado pra alguém. Algum
último pedido.
Tinham passado a
tratá-lo de “senhor”.
- Não, não.
O homem da esquerda
parecia saber mais do que os outros sobre a vida do Falcão.
- Algum recado para
a condessa? Antônio sorriu tristemente.
- Só diga que
pensei nela, no fim.
O homem da frente
sacudiu a cabeça outra vez. Que desperdício, terem que matar um
homem como Falcão. Quando chegaram à ponte, ninguém tomou a
iniciativa de descer do carro. Ninguém falou. Pareciam
constrangidos. Foi Antônio quem disse:
- Vamos acabar logo
com isto.
- O senhor quer
alguma coisa? Um cigarro?
- Estou tentando
parar - brincou Antônio.
Depois se lembrou
de um anúncio que vira numa revista e perguntou:
- Nenhum de vocês
teria um frasco de Curry Sark no bolso, teria?
Os quatro riram sem
jeito. Não tinham. Antônio deu de ombros. Então não havia por que
retardar a execução.
Um dos homens abriu
os braços e disse:
- Não nos leve a
mal...
- O que é isso? -
sorriu Antônio. - O que tem que ser, tem que ser. E não posso me
queixar. Tive uma vida cheia.
Os quatro apertaram
a mão de Antônio, emocionados. Depois amarraram suas mãos atrás e
o jogaram da ponte.
Luís Fernando
Veríssimo, in As mentiras que os homens contam
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