sexta-feira, 1 de junho de 2018

O Falcão

Só uma palavra descrevia a vida de Antônio. Foi a palavra que ele usou quando viu o tamanho da fila do ônibus.
- Que merda!
Estava mal empregado, mal casado, mal tudo. E agora precisava chegar em casa e dizer à mulher que não atingira sua cota de vendas para o mês e que não podiam contar com o extra para pagar a prestação da geladeira nova. E que ela não o incomodasse.
Foi quando sentiu que encostavam a ponta de um cano nas suas costas. E uma voz igualmente dura disse no seu ouvido:
- Entra no carro.
Entrou no carro. O homem que metera a arma nas suas costas entrou em seguida. Antônio ficou espremido entre ele e outro homem. Que parecia ser quem dava as ordens.
- Vamos, vamos - disse o outro homem.
O carro arrancou. Eram quatro. Dois na frente. Os quatro bem vestidos. Quando conseguiu falar, Antônio perguntou:
- O que é isto?
O silêncio.
- É sequestro?
Não podia ser sequestro. Ele era um insignificante. Não tinha dinheiro. Não tinha nada. Iam querer sua geladeira nova? Assalto também não era. Não pareciam interessados no que ele tinha nos bolsos (chaveiro, o dinheiro contado para o ônibus, uma fração de bilhete da loteria, as pastilhas para azia). Não pareciam interessados em nada. Olhavam para a frente e não falavam.
- Vocês não pegaram o homem errado, não?
O homem da esquerda, o que parecia estar no comando, finalmente olhou para Antônio. Disse:
- Fica quietinho que é melhor pra todo mundo.
- Mas por que me pegaram?
O homem sentado no banco da frente olhou para trás. Estava sorrindo. Não era um sorriso amigável.
- Você sabe por quê.
E de repente os quatro estavam falando. Cada um dizia uma frase, como se tivessem ensaiado.
- Você está sendo observado desde o aeroporto em Genebra.
- A Margaret, que você levou pro quarto, trabalha para o Alcântara. Foi ela quem nos deu o local do seu encontro com o Frankel, hoje.
- Foi a noite mais cara da sua vida, Falcão.
- Espera um pouquinho. Meu nome não é Falcão.
- Claro que não.
- Sabemos até que vinho você e a Margaret tomaram no jantar.
- A truta estava boa, Falcão?
- Meu nome não é Falcão! -
E a Margaret, que tal? Comparada com a truta?
- Eu posso provar que não sou o Falcão. É só olharem minha identidade!
- Nos respeite, Falcão. Nós estamos respeitando você.
- Mas é verdade! Vocês pegaram o homem errado! Olhem aqui... Antônio começou a tirar a carteira do bolso de trás mas o homem à sua direita o deteve. O da esquerda falou, num tom magoado:
- Não nos menospreze assim, Falcão. Só porque você é quem é, não é razão para nos menosprezar. Por favor.
- Mas olhem a minha identidade!
- Você tem mil identidades. O Alcântara nos avisou: não deixem ele enrolar vocês. O Falcão é uma águia.
- O Alcântara admira muito você, Falcão. Diz que se você não fosse tão bom, não seria preciso matá-lo.
Antônio deu uma risada. Na verdade, foi mais um latido. Seguido de um longo silêncio. Depois:
- Vocês vão me matar?
- Você sabe que sim.
Novo silêncio. Os quatro homens também pareciam subitamente tomados pela gravidade da situação. O da frente olhou para Antônio e sorriu, desta vez sem desdém.
Depois virou-se para a frente e sacudiu a cabeça. Como se recém-tivesse se dado conta do que ia acontecer dali a pouco. Iam matar o Falcão. Estavam vivendo os últimos instantes de vida do grande Falcão. E Antônio sentiu uma coisa que nunca sentira antes. Uma espécie de calma superior. Nunca na sua vida participara de uma coisa tão solene. Quando falou, sua voz parecia a de outra pessoa.
- Por quê?
- O senhor sabe por quê.
- Onde?
Alguns segundos de hesitação. Depois:
- Na ponte.
O motorista lembrou-se:
- O seu Alcântara mandou perguntar se o senhor queria deixar recado pra alguém. Algum último pedido.
Tinham passado a tratá-lo de “senhor”.
- Não, não.
O homem da esquerda parecia saber mais do que os outros sobre a vida do Falcão.
- Algum recado para a condessa? Antônio sorriu tristemente.
- Só diga que pensei nela, no fim.
O homem da frente sacudiu a cabeça outra vez. Que desperdício, terem que matar um homem como Falcão. Quando chegaram à ponte, ninguém tomou a iniciativa de descer do carro. Ninguém falou. Pareciam constrangidos. Foi Antônio quem disse:
- Vamos acabar logo com isto.
- O senhor quer alguma coisa? Um cigarro?
- Estou tentando parar - brincou Antônio.
Depois se lembrou de um anúncio que vira numa revista e perguntou:
- Nenhum de vocês teria um frasco de Curry Sark no bolso, teria?
Os quatro riram sem jeito. Não tinham. Antônio deu de ombros. Então não havia por que retardar a execução.
Um dos homens abriu os braços e disse:
- Não nos leve a mal...
- O que é isso? - sorriu Antônio. - O que tem que ser, tem que ser. E não posso me queixar. Tive uma vida cheia.
Os quatro apertaram a mão de Antônio, emocionados. Depois amarraram suas mãos atrás e o jogaram da ponte.
Luís Fernando Veríssimo, in As mentiras que os homens contam

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