Buenos Aires,
outubro de 59: já poderia - como aquele ingênuo novo-rico que
gravou nos seus cartões de visita: Fulano de Tal, ex-passageiro do
“Cap Arcona” - mandar colocar nos meus, se os tivesse: V. de M.,
ex-passageiro do “Caravelle”. Pois a verdade é que acabei de
ingressar na era do jacto puro, com um voo de Montevidéu a Buenos
Aires. Voo fulminante, pois mal subimos e o piloto já estava
resolvendo os problemas da descida. Devido à curta distância (para
um jacto) do trajeto, não foi possível tomar a altura ideal de 12
mil metros, onde a serenidade é quase total e a vibração quase
nula; mas de qualquer maneira achamos, a Bem-Amada e eu, emocionante
voarmos a 7 mil metros, numa velocidade de oitocentos quilômetros
horários e a uma temperatura externa de 300 abaixo de zero. E dentro
do avião tudo quentinho como deve ser.
No chão, que ainda
é melhor, a temperatura está também como deve ser, nesta boa
cidade de Buenos Aires. Ainda há pouco, ao andar rodando por aí
tudo, lembrei-me de mim mesmo, faz 14 anos, passeando por estas
mesmas ruas em companhia de Aníbal Machado e Moacir Werneck de
Castro. Éramos mais moços de quase três lustros e estávamos
contentes da vida porque tínhamos escapado por milagre do desatre do
six-motor francês “Leonel de Marmier” (num voo entre Rio e B.
A.), que conseguiu amarar ninguém sabe como numa lagoa próxima à
cidade de Rocha, em pleno pampa uruguaio, depois de ter tido a nacela
cortada de alto a baixo por uma das hélices, que desprendera do
motor e entrara avião adentro, numa carnificina que mais vale não
lembrar. O tempo do desastre foi de seis minutos: seis terríveis
minutos de expectativa da morte. Valha-nos, na era do jacto puro,
saber que o indivíduo provavelmente desintegra, em caso de acidente.
Hoje, domingo, 25,
fizemos, em companhia do meu mui caro, leal e valoroso amigo Lauro
Escorel, secretário de Embaixada em B.A., uma grande rodada de
automóvel que nos levou para lá do Palermo. A cidade dominical era
tranquila, fria e com um céu de névoas. Lembro-me de que, num
determinado momento, ao passarmos por uma enorme edificação toda
murada, disse-nos o ensaísta de O pensamento político de Maquiavel
ser ali o lugar onde são tratadas as águas que abastecem Buenos
Aires. Fiquei pensando que, mais ainda que ex-passageiro do
Caravelle, gostaria de ter nos meus cartões de visita: V. de M.,
médico de águas. Assim seria apresentado às pessoas nas festas, em
vez de como poeta ou diplomata. E ante a estranheza que lhes causaria
o título, eu confirmaria gravemente:
- Sim, minha
senhora, médico de águas, para servi-la...
Depois a imaginação
se me partiu, e eu fiquei achando que médico de flores seria ainda
mais belo. Que linda e honesta profissão a ter! E como eu seria o
único do Rio, não chegaria para as encomendas, com uma clientela de
fazer inveja a meus amigos os drs. Clementino Fraga Filho, Marcelo
Garcia e Ivo Pitanguy, dentro de suas especialidades. Estaria assim
muito bem no meu consultório e de repente minha mãe, aflitíssima,
telefonaria: “Meu filho, vem depressa que minhas rosas estão
morrendo...” E eu partiria com a minha maletinha para auscultar o
coração das rosas, aplicar-lhes a coramina das flores, fazer-lhes
transfusão de seiva, reavivar-lhes as cores, a fragrância, a
beleza. E mal chegado a casa já haveria recados de milhões de
amigas preocupadíssimas com suas azáleas, seus redodendros, seus
antúrios. E eu voltaria feliz e diria com orgulho e alegria à
Bem-Amada: “Acho que consegui salvar as rosas de minha mãe.” E a
Bem-Amada ficaria muito contente e me daria um beijo. E eu daria
também consultas a flores pobres, e na rua todas as damas me
sorririam com simpatia e respeito, cumprimentando-me com graciosos
ademanes. E eu as cumprimentaria de volta, com a circunspecção que
deve ter um médico de flores.
Vinicius
de Moraes, in Para viver um grande amor
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