Dona Clara era uma
velhinha de 95 anos, lá em Minas. Vivia uma religiosidade mansa, sem
culpas ou medos. Na cama, cega, a filha lhe lia a Bíblia. De
repente, ela fez um gesto, interrompendo a leitura. O que ela tinha a
dizer era infinitamente mais importante. “Minha filha, sei que
minha hora está chegando... Mas, que pena! A vida é tão boa...”
Eram seis da manhã.
Minha filha me acordou. Ela tinha três anos. Fez-me então a
pergunta que eu nunca imaginara: “Papai, quando você morrer você
vai sentir saudades?”. Emudeci. Não sabia o que dizer. Ela
entendeu e veio em meu socorro: “Não chore que eu vou te
abraçar...”. Ela, menina de três anos, sabia que a morte é onde
mora a saudade porque lá a gente fica longe dessa terra tão boa...
Eu, por enquanto,
não quero morrer. Já tive medo de morrer. Hoje não tenho mais. O
que sinto é uma enorme tristeza.
Mas tenho muito
medo DO morrer. O morrer pode vir acompanhado de dores, humilhações,
aparelhos e tubos enfiados no meu corpo contra a minha vontade, sem
que eu nada possa fazer porque já não sou mais dono de mim mesmo,
solidão, ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas
comigo, falar sobre a minha morte, medo de que a passagem seja
demorada.
A morte deveria ser
como os últimos compassos de uma sonata: belos e tristes, até que
venha o silêncio. Camus dizia que o suicida prepara seu suicídio
como uma obra de arte. Seria possível planejar a própria morte, sem
suicídio, como uma obra de arte? Mas quem, nos hospitais, se
preocupa com a beleza?
Zorba morreu
olhando para as montanhas. Uma amiga me disse que quer morrer olhando
para o mar. Montanhas e mar: haverá metáforas mais belas para o
Grande Mistério?
Mas a medicina não
entende.
Um amigo contou-me
dos últimos dias do seu pai, já bem velho. As dores eram terríveis.
Dirigiu-se, então, ao médico: “O senhor não poderia aumentar a
dose dos analgésicos para que meu pai não sofra?”. O médico o
olhou com olhar severo e lhe disse: “O senhor está sugerindo que
eu pratique a eutanásia?”. Impecável o médico, na sua severidade
ética e religiosa. Enquanto sua consciência permanecia calma, o
velhinho estava mergulhado num abismo de dor.
Um outro velhinho
querido, 92 anos, cego, surdo, todos os esfíncteres sem controle,
numa cama, em meio aos fedores de fezes e urina — de repente, o
acontecimento desejado, libertador: seu coração parou. Ah, com
certeza fora o seu Anjo da Guarda que assim punha um fim à sua
miséria! Aquela parada cardíaca era o último acorde da sonata
alegre que fora a sua vida! Mas o médico, movido pelos automatismos
éticos costumeiros, apressou-se a cumprir o seu dever: debruçou-se
sobre o velhinho morto e o fez viver de novo.
Dir-me-ão que é
dever dos médicos fazer todo o possível para que a vida continue.
Mas o que é vida? Mais precisamente: o que é a vida de um ser
humano? Permanecemos humanos enquanto existe em nós a esperança da
beleza e da alegria. Morta a possibilidade de sentir alegria ou gozar
a beleza, o corpo se transforma numa casca de cigarra vazia.
Muitos dos chamados
“recursos heroicos” para manter vivo um paciente são, do meu
ponto de vista, uma violência ao princípio da “reverência pela
vida”. Porque, se os médicos dessem ouvidos ao pedido que a vida
está fazendo, eles a ouviriam dizer: “Sou um pássaro engaiolado.
Abram a porta! Deixem-me voar livre pelos ares!”.
Rubem Alves,
in Pimentas: para
provocar um incêndio, não é preciso fogo
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