Civilizando Huck
– Moisés e os “Caras dos Papiros” – Srta. Watson – Tom
Sawyer à espera
Cenário: Vale do
Mississippi
Tempo: De quarenta
a cinquenta anos atrás
Você não sabe
nada de mim se não leu um livro com o nome As aventuras de Tom
Sawyer, mas pouco importa. Esse livro foi feito pelo senhor Mark
Twain, e ele falou a verdade, no mais das vezes. Teve coisas que ele
exagerou, mas no mais das vezes ele falou a verdade. Isso não é
nada. Nunca vi ninguém que não mentisse uma vez ou outra, a não
ser a tia Polly, ou a viúva, ou talvez Mary. A tia Polly – a tia
Polly de Tom – e Mary e a Viúva Douglas todas aparecem nesse
livro, que é em geral um livro verdadeiro, com alguns exageros, como
eu disse antes.
Agora o jeito como
o livro acaba é o seguinte: Tom e eu encontramos o dinheiro que os
ladrões esconderam na caverna, e isso nos deixou ricos. Ganhamos
seis mil dólares cada um – tudo ouro. Uma visão tremenda de
dinheiro quando foi empilhado. Bem, o juiz Thatcher ele pegou o
dinheiro e guardou rendendo juros, e isso nos dava um dólar por dia
pra cada um durante todo o ano – mais do que alguém ia saber o que
fazer com ele. A Viúva Douglas ela me pegou pra filho e declarou que
ia me civilizar, mas era duro viver na casa o tempo todo,
considerando a tristeza de como a viúva era cheia de regras e
decente em todos os seus modos. E assim, quando não consegui
aguentar mais, dei o fora. Me meti de novo nos meus velhos trapos e
no meu barril de açúcar, e fiquei livre e satisfeito. Mas Tom
Sawyer me caçou e disse que ia fundar um bando de assaltantes e que
eu só podia entrar no grupo voltando pra viúva e sendo respeitável.
Assim voltei.
A viúva chorou por
mim, me chamou de pobre cordeiro perdido e também me chamou de uma
porção de outros nomes, mas nunca teve a intenção de me ofender
com isso. Ela me meteu de novo naquelas roupas novas, e eu não podia
fazer nada, só suar e suar, e me sentir todo apertado. Bem, então,
a velha história começou de novo. A viúva tocava um sino para o
jantar, e ocê tinha que chegar na hora. Quando ocê ia pra mesa, não
podia começar logo a comer, mas tinha que esperar a viúva baixar a
cabeça e resmungar um pouco sobre a comida, apesar de não ter
realmente nada de errado com ela – isto é, nada só que tudo era
cozido separado. Num barril de restos é diferente, as coisas se
misturam e o suco meio que gira com força ali dentro, e a coisa fica
mais gostosa.
Depois do jantar
ela pegava seu livro e me ensinava sobre Moisés e os caras dos
Papiros, e eu tava doido pra saber tudo sobre ele, mas aos poucos ela
deixou escapar que já fazia um bom tempo que Moisés tava morto,
assim não dei mais bola, porque não me interesso por mortos.
Pouco depois eu
quis fumar e pedi licença pra viúva. Mas ela não quis saber. Disse
que era um hábito ruim e não era limpo e que eu devia tentar não
fazer mais aquilo. É assim com algumas pessoas. Elas pegam birra com
alguma coisa mesmo sem saber nada sobre a coisa. Ela ficava se
preocupando com Moisés, que não era parente dela, não tinha valor
pra ninguém, já morto, entende, mas descobrindo uma falha enorme em
mim porque eu fazia uma coisa que tinha alguma serventia. E ela
cheirava rapé também, claro que isso nada tinha de errado, porque
era ela que fazia.
Sua irmã, a
senhorita Watson, uma solteirona muito magra, de óculos, veio morar
com ela e me chamou pra sentar ao seu lado com uma cartilha. Ela me
fez dar mais ou menos duro por uma hora, e então a viúva mandou ela
maneirar. Eu não aguentava mais. Então, durante uma hora foi um
tédio mortal e eu tava nervoso. A senhorita Watson dizia: “Não
põe os pés aí em cima, Huckleberry” e “Não fica encolhido
desse jeito, Huckleberry – senta direito”; e logo depois ela
dizia: “Não fica de boca aberta e atirado assim, Huckleberry –
por que você não tenta se comportar?”. Então ela me contou tudo
sobre o lugar ruim, e eu disse que queria ir pra lá. Ela ficou
brava, mas eu não fiz por mal. Tudo o que eu queria era ir pra algum
lugar; tudo o que eu queria era uma mudança, qualquer uma. Ela disse
que era malvadeza dizer o que eu disse; falou que não dizia isso por
nada neste mundo; ela ia viver de um certo jeito pra ir pro lugar
bom. Bem, eu não via nenhuma vantagem em ir pra onde ela tava indo,
então decidi que não ia me esforçar pra isso. Mas não falei nada,
porque isso ia provocar encrenca e não ia me fazer bem nenhum.
Agora que tinha
começado, ela continuou e me contou tudo sobre o lugar bom. Disse
que tudo que alguém tinha que fazer lá era andar à toa o dia
inteiro com uma harpa e cantar pra todo o sempre. Não achei muito
interessante. Mas não disse nada. Perguntei se ela achava que Tom
Sawyer ia pra lá, e ela disse que não, de jeito nenhum. Fiquei
contente com isso, porque eu queria nós dois juntos.
A senhorita Watson,
ela continuou a me amolar, e tudo ficou aborrecido e solitário. Dali
a pouco elas mandaram buscar os negros pra dentro da casa, e fizemos
orações, depois todo mundo saiu pra ir dormir. Subi pro meu quarto
com um pedaço de vela e coloquei a vela sobre a mesa. Então me
sentei numa cadeira perto da janela e tentei pensar em alguma coisa
alegre, mas não adiantava. Eu tava me sentindo tão só que o que eu
mais queria era tá morto. As estrelas brilhavam e as folhas faziam
um ruído muito triste na mata; e escutei uma coruja, bem longe,
piando por alguém que tava morto, e um noitibó e um cachorro
berrando por alguém que ia morrer; e o vento tava tentando me
sussurrar alguma coisa, eu não conseguia descobrir o que era, e
assim senti calafrios por todo o corpo. Depois lá longe na mata ouvi
aquela espécie de som que um fantasma faz quando quer dizer algo que
tem na cabeça e não consegue se fazer entender, e por isso não
pode ficar quieto no seu túmulo, tem que andar por aí a noite toda,
lamentando. Fiquei tão abatido e assustado que desejei muito uma
companhia. Aí uma aranha começou a subir pelo meu ombro, e eu dei
um piparote, e ela caiu sobre a vela e, antes de eu poder me mexer,
já tava toda engrouvinhada. Eu não precisava de ninguém pra me
dizer que isso era um terrível mau sinal e que ia me trazer bastante
azar, então fiquei com medo e quase arranquei a roupa. Me levantei e
andei pelo quarto voltando sobre os meus passos umas três vezes e
fiz o sinal da cruz no meu peito a cada vez e depois atei um pequeno
anel do meu cabelo com um fio pra manter as bruxas bem longe. Mas não
me sentia confiante. É o que a gente faz quando perde uma ferradura
que achou em algum lugar, em vez de pregar ela sobre a porta, mas
nunca tinha ouvido ninguém dizer que era um jeito de afastar o azar
quando alguém mata uma aranha.
Sentei de novo,
tremendo todo, e tirei o meu cachimbo pra fumar, pois a casa tava num
silêncio mortal agora, e assim a viúva não ia ficar sabendo. Bem,
depois de muito tempo escutei o relógio bem longe na cidade fazer
bum-bum-bum – doze badaladas; e tudo em silêncio de novo – mais
quieto do que nunca. Então escutei um galhinho estalar no escuro
entre as árvores – alguma coisa tava se mexendo. Fiquei sentado
quieto e prestei atenção. Mal consegui ouvir um “eu-aqui!
eu-aqui!” ali fora. Um bom sinal! Disse “eu-aqui! eu-aqui!” tão
baixinho quanto pude, e depois apaguei a luz e me arrastei pra fora
da janela sobre o telheiro. Então escorreguei pro chão e, pelas
barbas do profeta, ali tava Tom Sawyer esperando por mim.
Mark Twain,
in As Aventuras de Huckleberry Finn
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