domingo, 6 de maio de 2018

Prólogo de Zaratustra - 3

Quando Zaratustra chegou à cidade mais próxima, na margem da floresta, ali encontrou muita gente reunida na praça; pois fora anunciado que um equilibrista andaria na corda. E Zaratustra assim falou à gente:
Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser superado.
Que fizestes para superá-lo? Todos os seres, até agora, criaram algo acima de si próprios: e vós quereis ser a vazante dessa grande maré, e antes retroceder ao animal do que superar o homem?
Que é o macaco para o homem? Uma risada, ou dolorosa vergonha. Exatamente isso deve o homem ser para o super-homem: uma risada, ou dolorosa vergonha.
Fizestes o caminho do verme ao homem, e muito, em vós, ainda é verme. Outrora fostes macacos, e ainda agora o homem é mais macaco do que qualquer macaco.
O mais sábio entre vós é apenas discrepância e mistura de planta e fantasma. Mas digo eu que vos deveis tornar fantasmas ou plantas?
Vede, eu vos ensino o super-homem!
O super-homem é o sentido da terra. Que a vossa vontade diga: o super-homem seja o sentido da terra!
Eu vos imploro, irmãos, permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos que vos falam de esperanças supraterrenas!
São envenenadores, saibam eles ou não. São desprezadores da vida, moribundos que a si mesmos envenenaram, e dos quais a terra está cansada: que partam, então!
Uma vez a ofensa a Deus era a maior das ofensas, mas Deus morreu, e com isso morreram também os ofensores. Ofender a terra é agora o que há de mais terrível, e considerar mais altamente as entranhas do inescrutável do que o sentido da terra!
Uma vez a alma olhava com desprezo para o corpo: e esse desdém era o que havia de maior: — ela o queria magro, horrível, faminto. Assim pensava ela escapar ao corpo e à terra.
Oh, essa alma mesma era ainda magra, horrível e faminta: e a crueldade era a volúpia dessa alma!
Mas também vós, irmãos, dizei-me: o que conta vosso corpo sobre vossa alma? Não é ela pobreza, imundície e lamentável satisfação?
Na verdade, um rio imundo é o homem. É preciso ser um oceano para acolher um rio imundo sem se tornar impuro.
Vede, eu vos ensino o super-homem: ele é este oceano, nele pode afundar o vosso grande desprezo.
Qual é a maior coisa que podeis experimentar? É a hora do grande desprezo.
A hora em que também vossa felicidade se converte em nojo para vós, assim como vossa razão e vossa virtude.
A hora em que dizeis: “Que importa minha felicidade? Ela é pobreza, imundície e lamentável satisfação. Mas minha felicidade deveria justificar a própria existência!”.
A hora em que dizeis: “Que importa minha razão? Procura ela o saber, como o leão seu alimento? Ela é pobreza, imundície e lamentável satisfação!”.
A hora em que dizeis: “Que importa minha virtude? Ela ainda não me fez delirar. Como estou cansado de meu bem e meu mal! Tudo isso é pobreza, imundície e lamentável satisfação!”.
A hora em que dizeis: “Que importa minha justiça? Não estou me vendo a ser brasa e carvão. Mas o justo é brasa e carvão!”.
A hora em que dizeis: “Que importa minha compaixão? A compaixão não é a cruz em que pregam aquele que ama os homens? Mas minha compaixão não é crucificação”.
Já falastes assim? Já gritastes assim? Ah, tivesse eu ouvido gritardes assim!
Não o vosso pecado — a vossa frugalidade brada aos céus, vossa avareza até no pecado brada aos céus!
Onde está o raio que venha lamber-vos com sua língua? Onde está a loucura com que deveríeis ser vacinados?
Vede, eu vos ensino o super-homem: ele é esse raio, ele é essa loucura! —
Depois de Zaratustra assim falar, alguém do povo gritou: “Já ouvimos bastante sobre o equilibrista; agora nos deixa vê-lo!”. E todos riram de Zaratustra. Mas o equilibrista, que achava que as palavras se referiam a ele, pôs-se a trabalhar.
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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