Uma
moça me escreveu. Estava lutando para ser admitida no “País dos
Saberes”. Estava escrevendo uma tese. Tinha de provar o seu domínio
da gramática da ciência. Sua tese era sobre as estórias infantis
que escrevi. Guiada pelo guardião dos saberes acadêmicos, o seu
orientador, enviou-me um questionário preparado segundo as regras
acadêmicas.
Primeira
pergunta:
“De
que teoria o senhor lança mão para escrever as suas estórias?”
Segunda
pergunta:
“Que
método o senhor usa para escrever suas estórias?”
Pobrezinha.
Minhas respostas não a ajudaram. Nem lanço mão de teoria nem uso
método para escrever minhas coisas. Lançaria mão de teoria e
usaria método se eu estivesse procurando. Mas “eu não procuro. Eu
encontro”.
Para
os soldados que marcham em parada, a coreografia do grupo de dança O
Corpo é anarquia. A marcha dos soldados segue a lógica da
causalidade. “Ordinário! Marche!” Uma coisa depois da outra, na
ordem devida, segundo a lógica da sucessão e da contiguidade.
Mas
a dança do corpo segue a lógica do amor. Lógica do amor? Amor tem
lógica? Amor não é só loucura? Sentimento puro, incapaz de
conhecer? Não será por isso que ele foi excluído do “País dos
Saberes”? Ah! Como os pedagogos têm medo da palavra amor! Se a
usassem, seriam apelidados de românticos! Mas quem tem
respeito intelectual por um romântico? Na melhor das hipóteses, ele
escreverá poemas e comporá canções. Mas de um romântico não se
pode esperar conhecimento. Apenas ejaculações emotivas. E não há
nada a que os pedagogos mais aspirem que ser admitidos no “País
dos Saberes”. Por isso sonham com a elevação da educação à
dignidade de ciência, para poder ser admitidos nos círculos da
ciência.
Haverá
lógica em Baco? Em Lewis Carroll? Em Fernando Pessoa? Lembro-me de
um conselho dado pelo professor Ubiratan d’Ambrosio, matemático.
Num programa de TV, perguntado por alguém sobre o que fazer para
aprender lógica, ele respondeu: “Leia poesia”.
Existe
uma lógica na marcha dos soldados. A lógica da marcha dos soldados
nos coloca dentro das regras do mundo da consciência, as coisas que
acontecem sobre a superfície do rio. Mas existe também uma lógica
na dança. Ela nos faz mergulhar nas profundezas do corpo, aquilo a
que a psicanálise chama pelo nome de inconsciente. “Há sempre
alguma loucura no amor”, dizia Zaratustra. “Mas há também
sempre alguma razão na loucura.” Na dança das associações
livres, as ideias se ligam umas às outras por amor. “Les mots font
l’amour”, disse André Breton. E o amor não conhece distâncias.
Toda metáfora é um salto sobre o abismo.
Rubem
Alves, in Variações sobre o prazer
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