segunda-feira, 30 de abril de 2018

É um alho!

Qualquer dicionário dirá o Allium sativum, Linneu, como sinônimo de homem esperto, arguto, atilado. Essas liliáceas foram trazidas de Portugal no século XVI, indispensáveis na alimentação lusitana desde tempo imemorial. Em Portugal o alho é remédio, condimento excepcional, amuleto, tônico, tendo um sem-número de predicados mágicos e nutritivos para o povo. Os demônios, fantasmas e bruxas não podem agir onde sentir-se o cheiro de alho e sobre pessoa que o tiver ingerido. A literatura oral portuguesa registra numerosas menções e a antiguidade clássica do alho em Roma afere-se nas citações de Plauto, Virgílio, Horácio.
Curiosamente a força mágica do alho veio para o Brasil com a mesma potência irresistível. Todos os seres fabulosos temem e evitam o alho. O Saci-Pererê, a Caipora, o Curupira, os Botos conquistadores, a falsa Mãe-d’Água na sua encarnação de sereia-cantora, loura e de olhos azuis, fogem do alho como o diabo da cruz. É uma defesa contra os feitiços malfazejos. Cabeça de alho no bolso afasta qualquer força malévola de feitiço contrário.
Todos esses atributos vieram de Portugal, porque o alho não existia no Brasil antes que os portugueses instalassem o domínio colonizador. E manteve no Brasil os mesmos poderes que possui em Portugal.
Não sei como mestre João Ribeiro (Frases feitas, I, 82) escreveu: “Alho é o sujeito que parece gente e não é, mete-se a sabido e sai tolo”.
Pessoa alguma em Portugal e Brasil dirá que alguém é um alho, sendo tolo. Alho é o esperto, vivo, ágil, inventivo, sabendo desembaraçar-se das dificuldades.
O conjunto de alhos, porção deles, diz-se alhada, valendo problema, confusão, complicações. “Não me meto em alhadas!”. Era, no século XVI, uma sopa de alhos, espessa, saborosa, nutritiva. “Meu pecado me meteu nesta alhada”, diz Jorge Ferreira de Vasconcelos na Eufrasina (IV, 4).
O segredo dessas forças mágicas está no cheiro forte, penetrante e persistente do alho. Horácio escreveu contra ele um épodo, Allium detestatur, e consta do Mil e uma noites o episódio em que o seu odor perturbou uma noite de núpcias. Raquel Mussolini, viúva do “Duce”, narra que o Príncipe Aimone de Savoia, indo visitá-la a bordo do iate em Brione, apresentou desculpas por ter comido alhos, sensíveis no hálito. O olor é que constitui uma infração social. Deve haver razões de milênios para os demônios, os elegantes do convívio aristocrático, não suportarem o aroma do alho. Mas seu consumo, em todas as classes portuguesas, denuncia-se pelo versinho quinhentista de Sá de Miranda: 
 
E podem cheirar a alho
Ricos homens e infanções.
Luís da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz

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