quarta-feira, 18 de abril de 2018

E eles viveram felizes para sempre

Os últimos 500 anos testemunharam uma série de revoluções de tirar o fôlego. A Terra foi unida em uma única esfera histórica e ecológica. A economia cresceu exponencialmente, e hoje a humanidade desfruta do tipo de riqueza que só existia nos contos de fadas. A ciência e a Revolução Industrial deram à humanidade poderes sobre-humanos e energia praticamente sem limites. A ordem social foi totalmente transformada, bem como a política, a vida cotidiana e a psicologia humana.
Mas somos mais felizes? A riqueza que a humanidade acumulou nos últimos cinco séculos se traduz em contentamento? A descoberta de fontes de energia inesgotáveis abre diante de nós depósitos inesgotáveis de felicidade? Voltando ainda mais no tempo, os cerca de 70 milênios desde a Revolução Cognitiva tornaram o mundo um lugar melhor para se viver? O falecido Neil Armstrong, cuja pegada continua intacta na Lua sem vento, foi mais feliz que os caçadores-coletores anônimos que há 30 mil anos deixaram suas marcas de mão em uma parede na caverna de Chauvet? Se não, qual o sentido de desenvolver agricultura, cidades, escrita, moeda, impérios, ciência e indústria?
Os historiadores raramente fazem essas perguntas. Eles não perguntam se os cidadãos de Uruk e da Babilônia foram mais felizes que seus ancestrais caçadores-coletores, se a ascensão do islamismo tornou os egípcios mais satisfeitos com a vida, ou de que modo o colapso dos impérios europeus na África influenciou a felicidade de muitos milhões de pessoas. Mas essas são as perguntas mais importantes que podemos fazer à história. A maioria dos programas ideológicos e políticos atuais se baseia em ideias um tanto frágeis no que concerne à fonte real de felicidade humana. Os nacionalistas acreditam que a autodeterminação política é essencial para a nossa felicidade. Os comunistas postulam que todos seriam felizes sob a ditadura do proletariado. Os capitalistas sustentam que só o livre mercado pode garantir a maior felicidade possível para o maior número, criando crescimento econômico e abundância material e ensinando as pessoas a serem autossuficientes e empreendedoras.
O que aconteceria se pesquisas sérias mostrassem que essas hipóteses estão erradas? Se o crescimento econômico e a autossuficiência não tornam as pessoas mais felizes, qual o benefício do capitalismo? E se for revelado que os súditos de grandes impérios são, em geral, mais felizes que os cidadãos de Estados independentes e que, por exemplo, os ganenses eram mais felizes sob o domínio colonizador britânico do que sob seus próprios ditadores? O que isso diria sobre o processo de descolonização e sobre o valor da soberania nacional?
Essas são todas possibilidades hipotéticas, porque até agora os historiadores têm evitado fazer essas perguntas, que dirá respondê-las. Eles pesquisaram a história de praticamente tudo – política, sociedade, economia, gênero, doenças, sexualidade, alimentação, vestuário –, mas raras vezes pararam para se perguntar como essas coisas influenciam a felicidade humana.
Embora poucos tenham estudado a história da felicidade no longo prazo, quase todos os estudiosos e leigos têm alguma ideia vaga preconcebida a esse respeito. Em uma visão comum, as capacidades humanas aumentaram ao longo da história. Considerando que os humanos geralmente usam suas capacidades para aliviar sofrimentos e satisfazer aspirações, decorre que devemos ser mais felizes que nossos ancestrais medievais e que eles devem ter sido mais felizes que os caçadores-coletores da Idade da Pedra.
Mas esse relato progressista não convence. Conforme vimos, novas aptidões, comportamentos e habilidades não necessariamente contribuem para uma vida melhor. Quando os humanos aprenderam a lavrar a terra na Revolução Agrícola, sua capacidade coletiva de moldar seu ambiente aumentou, mas o destino de muitos indivíduos humanos se tornou mais cruel. Os camponeses tinham de trabalhar mais do que os caçadores-coletores para obter alimentos menos variados e nutritivos e estavam muito mais expostos a doenças e à exploração. De maneira similar, a disseminação dos impérios europeus aumentou enormemente o poder coletivo da humanidade, fazendo circular ideias, tecnologias e sementes e abrindo novas rotas de comércio. Mas isso esteve longe de ser uma boa notícia para os milhões de africanos, índios americanos e aborígenes australianos. Considerando a comprovada propensão humana para fazer mau uso do poder, parece ingênuo acreditar que quanto mais influência as pessoas tiverem, mais felizes serão.
Alguns dos que contrariam essa visão adotam uma postura diametralmente oposta. Eles concordam que existe uma relação inversa entre potencialidades humanas e felicidade. O poder corrompe, dizem, e, à medida que ganhou cada vez mais poder, a humanidade criou um mundo frio e mecanicista mal-adaptado a nossas necessidades reais. A evolução moldou nossa mente e nosso corpo para a vida de caçadores-coletores. A transição primeiro para a agricultura e depois para a indústria nos condenou a levar uma vida antinatural que não permite expressar plenamente nossas inclinações e nossos instintos inerentes e, portanto, não é capaz de satisfazer nossas aspirações mais profundas. Nada na vida confortável da classe média urbana pode se aproximar do entusiasmo e da alegria experimentados por um bando de caçadores-coletores após a caçada bem-sucedida de um mamute. Cada nova invenção só aumenta a distância entre nós e o jardim do Éden.
Em particular, os românticos enfatizam que nosso mundo sensorial é muito mais pobre se comparado com o de nossos ancestrais. Os antigos caçadores-coletores viviam o momento presente, e tinham plena consciência de cada som, sabor e odor. Sua sobrevivência dependia disso. Nós, ao contrário, estamos terrivelmente sem foco. Podemos ir ao supermercado e escolher comer mil pratos diferentes. Mas, qualquer que seja o prato escolhido, provavelmente o comeremos às pressas diante da TV, sem prestar atenção ao sabor. Podemos viajar para mil lugares incríveis. Mas, para onde quer que formos, provavelmente estaremos brincando com nosso smartphone em vez de realmente ver o lugar. Temos mais opções do que nunca, mas quão boas são essas opções, se perdemos a capacidade de prestar atenção realmente?
Mas essa insistência romântica em ver uma sombra escura por trás de cada invenção é tão dogmática quanto a crença na inevitabilidade do progresso. Possivelmente perdemos o contato com o caçador-coletor dentro de nós, mas isso não é de todo ruim. Por exemplo, nos últimos dois séculos a medicina moderna reduziu a mortalidade infantil de 33% para menos de 5%. Alguém pode duvidar que isso fez uma enorme contribuição para a felicidade não só dessas crianças que do contrário teriam morrido como também de seus familiares e amigos?
Uma posição mais ponderada toma o caminho do meio. Até a Revolução Científica, não havia uma correlação clara entre potencialidades e felicidade. Os camponeses medievais podem, com efeito, ter sido mais infelizes que seus ancestrais caçadores-coletores. Mas nos últimos séculos os humanos aprenderam a usar suas potencialidades de modo mais sábio. Os triunfos da medicina moderna são apenas um exemplo. Outras conquistas sem precedentes incluem a drástica redução no índice de violência, o quase desaparecimento de guerras internacionais e a quase eliminação da fome em grande escala.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

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