A pérola e a onda (1862), de Paul-Jacques-Aimé Baudry
Aí
está ele, o mar, a mais ininteligível das existências não
humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível
dos seres vivos. Como ser humano fez um dia uma pergunta sobre si
mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos. Ela e o mar.
Só
poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao
outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança
com que se entregariam duas compreensões.
Ela
olha o mar, é o que pode fazer. Ele só lhe é delimitado pela linha
do horizonte, isto é, pela sua incapacidade humana de ver a
curvatura da terra.
São
seis horas da manhã. Só um cão livre hesita na praia, um cão
negro. Por que é que um cão é tão livre? Porque ele é o mistério
vivo que não se indaga. A mulher hesita porque vai entrar.
Seu
corpo se consola com sua própria exiguidade em relação à vastidão
do mar porque é a exiguidade do corpo que o permite manter-se quente
e é essa exiguidade que a torna pobre e livre gente, com sua parte
de liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado
frio que sem raiva ruge no silêncio das seis horas. A mulher não
está sabendo: mas está cumprindo uma coragem. Com a praia vazia
nessa hora da manhã, ela não tem o exemplo de outros humanos que
transformam a entrada no mar em simples jogo leviano de viver. Ela
está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e
grande, e isso é uma realização. Nessa hora ela se conhece menos
ainda do que conhece o mar. Sua coragem é a de, não se conhecendo,
no entanto prosseguir. É fatal não se conhecer, e não se conhecer
exige coragem.
Vai
entrando. A água salgada é de um frio que lhe arrepia em ritual as
pernas. Mas uma alegria fatal – a alegria é uma fatalidade – já
a tomou, embora nem lhe ocorra sorrir. Pelo contrário, está muito
séria. O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seus
mais adormecidos sonos seculares. E agora ela está alerta, mesmo sem
pensar, como um caçador está alerta sem pensar. A mulher é agora
uma compacta e uma leve e uma aguda – e abre caminho na gelidez
que, líquida, se põe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no
amor em que a oposição pode ser um pedido.
O
caminho lento aumenta sua coragem secreta. E de repente ela se deixa
cobrir pela primeira onda. O sal, o iodo, tudo líquido, deixam-na
por uns instantes cega, toda escorrendo – espantada de pé,
fertilizada.
Agora
o frio se transforma em frígido. Avançando, ela abre o mar pelo
meio. Já não precisa da coragem, agora já é antiga no ritual.
Abaixa a cabeça dentro do brilho do mar, e retira uma cabeleira que
sai escorrendo toda sobre os olhos salgados que ardem. Brinca com a
mão na água, pausada, os cabelos ao sol quase imediatamente já
estão se endurecendo de sal. Com a concha das mãos faz o que sempre
fez no mar, e com a altivez dos que nunca darão explicação nem a
eles mesmos: com a concha das mãos cheia de água, bebe em goles
grandes, bons.
E
era isso o que lhe estava faltando: o mar por dentro como o líquido
espesso de um homem. Agora ela está toda igual a si mesma. A
garganta alimentada se constringe pelo sal, os olhos avermelham-se
pelo sal secado pelo sol, as ondas suaves lhe batem e voltam pois ela
é um anteparo compacto.
Mergulha
de novo, de novo bebe mais água, agora sem sofreguidão pois não
precisa mais. Ela é a amante que sabe que terá tudo de novo. O sol
se abre mais e arrepia-a ao secá-la, ela mergulha de novo: está
cada vez menos sôfrega e menos aguda. Agora sabe o que quer. Quer
ficar de pé parada no mar. Assim fica, pois. Como contra os costados
de um navio, a água bate, volta, bate. A mulher não recebe
transmissões. Não precisa de comunicação.
Depois
caminha dentro da água de volta à praia. Não está caminhando
sobre as águas – ah nunca faria isso depois que há milênios já
andaram sobre as águas – mas ninguém lhe tira isso: caminhar
dentro das águas. Às vezes o mar lhe opõe resistência puxando-a
com força para trás, mas então a proa da mulher avança um pouco
mais dura e áspera.
E
agora pisa na areia. Sabe que está brilhando de água, e sal e sol.
Mesmo que o esqueça daqui a uns minutos, nunca poderá perder tudo
isso. E sabe de algum modo obscuro que seus cabelos escorridos são
de um náufrago. Porque sabe – sabe que fez um perigo. Um perigo
tão antigo quanto o ser humano.
Clarice
Lispector, in Todos os contos
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