Ilustração: Fernando Vilela
Vivia
em Nordestina, mesmo ali na rua de baixo, uma moça que apertava os
olhos pela metade quando olhava, por quem Antônio era completamente
apaixonado. Ninguém sabe dizer até hoje se o que endoidecia ele era
o olhar pelo meio de Karina ou o resto todo. Entenda-se por todo
inclusive o perfume que ela ia deixando por onde passava.
Antônio,
que pra cada pessoa era um, pra Karina era somente o rapaz que sempre
dava um pulo na casa dela quando largava do trabalho.
Depois
ficou diferente, mas só depois.
Só
depois que as coisas todas mudaram.
As
madrugadas de Nordestina andavam necessitadas de sonhos.
O
cheiro de guardado das coisas que tinham ficado sem dono aproveitava
pra passear nessas horas.
Às
sete da manhã, cada vez menos bocas bocejavam. Cada vez menos vozes
reclamavam da vida às dez e meia e menos sestas balançavam as redes
depois do almoço. Na hora do café eram exigidas poucas xícaras.
O
tempo andava espaçoso por não ter quem lhe interrompesse em momento
importante.
E,
Antônio, meio sem ter o que fazer, se botava a pensar besteira, pra
gazear o tempo até a hora de largar do trabalho. De tanto se ocupar
com a demora do tempo, acabou por ganhar intimidade com ele.
Ficaram
amigos.
Mesmo
assim, Antônio tinha que espremer a besteira até onde dava, pra
ajudar o tempo a passar, então primeiro pensava em besteira solteira
e depois em besteira casada. Besteira solteira era quando pensava em
coisa como descobrir razão pra existência de calombo, mas quando
pensava em Karina, só pensava em besteira casada. Devido à falta de
sorte, no melhor da besteira era justo quando o verbo fazer lhe
chamava. O verbo fazer, no vocabulário das tardes de Antônio, já
vinha com complemento. Era café que ele fazia. E então tinha que
servi-lo, posto que café se serve quente.
As
poucas conversas que se ouviam falavam sempre do mesmo assunto e não
tinham pretensão de serem promovidas. Tinham se acostumado a ser
conversa.
Procurava-se
resposta pra pergunta mais pra levar as dúvidas a passeio do que pra
chegar a alguma conclusão. No começo do dia as pessoas ainda tinham
uma conversa mais aprumada.
— O
povo vai embora porque aqui não tem recursos.
— E
por que não mandam recursos pra cá?
—
Mandar recursos pra cá pra que se o povo
está todo indo embora?
— Pro
povo ficar aqui.
— Mas
se aqui não tem recursos!
Quando
ia chegando a tardinha, a conversa descambava.
— Se
hoje é segunda, amanhã é terça.
— Não
foi numa terça que dona Ernestina foi embora?
— Dona
Ernestina tinha mania de chamar vidro de frasco.
Nessa
hora a sorte dava uma olhada pra Antônio, se rezava a Ave-Maria e
ele largava do trabalho.
Não
sendo pessoa importante, nunca se atrasava.
“Cheguei
cedo pro treino, Karina?”
“Não
é treino, Antônio. É ensaio.”
Naquele
tempo toda moça queria ser bonita e toda moça bonita queria ser
artista de televisão.
Televisão
era um negócio que ficava passando umas historinhas pro povo ficar
vendo.
As
historinhas iam acontecendo aos pedaços e de vez em quando vinham,
não um, mas vários anúncios pra vender coisas assim como
bicicleta. A finalidade era encontrar quem quisesse comprar o que era
anunciado, pois com parte do dinheiro da venda do produto anunciado
pagava-se para passar os tais anúncios e com parte do dinheiro dos
anúncios pagava-se a feição das tais histórias, sendo que eles
faziam as historinhas tão benfeitas que quem olhasse assim pensava
que a finalidade eram as historinhas.
Karina
era o nome da personagem da historinha que passava quando Karina
nasceu.
Enquanto
Karina da novela chorava as dores de um amor perdido, a mãe de
Karina de verdade chorava as dores do parto. Teimosa que era, no que
a filha lhe puxou, cismou de deixar pra chamar a parteira só no
final do capítulo. Entre um estamos apresentando e um voltamos a
apresentar, porém, Karina de verdade foi e nasceu, chorando mais do
que a da novela, decerto pra mostrar a todos como era braba.
Isso
Karina era, era braba sim, agora braba mesmo ela ficou foi naquela
noite em que Antônio se esqueceu de fazer de conta que era o
personagem e o beijo saiu de verdade, logo no início do ensaio:
“Será que não dá pra entender como é um beijo de novela, meu
Deus?” E Antônio respondeu: “Dá demais. Um personagem que não
sou eu vai usar a minha boca pra beijar um personagem que usa a sua
boca, mas não é você. Eu tenho que sentir o personagem aqui
dentro, sentir o amor dele, ter vontade por ele, mas na horinha mesmo
eu tenho que deixar de ser ele e voltar a ser eu pra poder me lembrar
que esse é um beijo de novela e quem está beijando não sou eu, é
ele.”
E
com essa explicação provou que, entender, tinha entendido, só não
achava justo, pois o único beneficiado na história era o tal do
personagem.
Mesmo
assim, só pra mostrar que tinha decorado seu papel, Antônio ainda
tentou outras vezes olhar no meio dos olhos de Karina, sentir um amor
que não era seu, dizer eu te amo, Guadalupe, e dar um beijo de
novela em Guadalupe pela boca de Karina. Tentou, tentou, mas lhe
parecia tão impossível que quase ia confessando:
“Que
eu te amo eu decorei faz tempo, Karina, que tu é Guadalupe é que
não tem jeito de eu decorar.” Só não confessou porque não era
com aquelas palavras que havia de dizer coisa tão importante.
Passou
então a procurar entre as palavras importantes a mais parecida com
aquela coisa lá que ele queria dizer.
Adriana
Falcão, in A máquina
Nenhum comentário:
Postar um comentário