terça-feira, 10 de abril de 2018

A moça da rua de baixo

Ilustração: Fernando Vilela 

Vivia em Nordestina, mesmo ali na rua de baixo, uma moça que apertava os olhos pela metade quando olhava, por quem Antônio era completamente apaixonado. Ninguém sabe dizer até hoje se o que endoidecia ele era o olhar pelo meio de Karina ou o resto todo. Entenda-se por todo inclusive o perfume que ela ia deixando por onde passava.
Antônio, que pra cada pessoa era um, pra Karina era somente o rapaz que sempre dava um pulo na casa dela quando largava do trabalho.
Depois ficou diferente, mas só depois.
Só depois que as coisas todas mudaram.

As madrugadas de Nordestina andavam necessitadas de sonhos.
O cheiro de guardado das coisas que tinham ficado sem dono aproveitava pra passear nessas horas.
Às sete da manhã, cada vez menos bocas bocejavam. Cada vez menos vozes reclamavam da vida às dez e meia e menos sestas balançavam as redes depois do almoço. Na hora do café eram exigidas poucas xícaras.
O tempo andava espaçoso por não ter quem lhe interrompesse em momento importante.
E, Antônio, meio sem ter o que fazer, se botava a pensar besteira, pra gazear o tempo até a hora de largar do trabalho. De tanto se ocupar com a demora do tempo, acabou por ganhar intimidade com ele.
Ficaram amigos.
Mesmo assim, Antônio tinha que espremer a besteira até onde dava, pra ajudar o tempo a passar, então primeiro pensava em besteira solteira e depois em besteira casada. Besteira solteira era quando pensava em coisa como descobrir razão pra existência de calombo, mas quando pensava em Karina, só pensava em besteira casada. Devido à falta de sorte, no melhor da besteira era justo quando o verbo fazer lhe chamava. O verbo fazer, no vocabulário das tardes de Antônio, já vinha com complemento. Era café que ele fazia. E então tinha que servi-lo, posto que café se serve quente.
As poucas conversas que se ouviam falavam sempre do mesmo assunto e não tinham pretensão de serem promovidas. Tinham se acostumado a ser conversa.
Procurava-se resposta pra pergunta mais pra levar as dúvidas a passeio do que pra chegar a alguma conclusão. No começo do dia as pessoas ainda tinham uma conversa mais aprumada.
O povo vai embora porque aqui não tem recursos.
E por que não mandam recursos pra cá?
Mandar recursos pra cá pra que se o povo está todo indo embora?
Pro povo ficar aqui.
Mas se aqui não tem recursos!
Quando ia chegando a tardinha, a conversa descambava.
Se hoje é segunda, amanhã é terça.
Não foi numa terça que dona Ernestina foi embora?
Dona Ernestina tinha mania de chamar vidro de frasco.
Nessa hora a sorte dava uma olhada pra Antônio, se rezava a Ave-Maria e ele largava do trabalho.
Não sendo pessoa importante, nunca se atrasava.
Cheguei cedo pro treino, Karina?”
Não é treino, Antônio. É ensaio.”

Naquele tempo toda moça queria ser bonita e toda moça bonita queria ser artista de televisão.
Televisão era um negócio que ficava passando umas historinhas pro povo ficar vendo.
As historinhas iam acontecendo aos pedaços e de vez em quando vinham, não um, mas vários anúncios pra vender coisas assim como bicicleta. A finalidade era encontrar quem quisesse comprar o que era anunciado, pois com parte do dinheiro da venda do produto anunciado pagava-se para passar os tais anúncios e com parte do dinheiro dos anúncios pagava-se a feição das tais histórias, sendo que eles faziam as historinhas tão benfeitas que quem olhasse assim pensava que a finalidade eram as historinhas.
Karina era o nome da personagem da historinha que passava quando Karina nasceu.
Enquanto Karina da novela chorava as dores de um amor perdido, a mãe de Karina de verdade chorava as dores do parto. Teimosa que era, no que a filha lhe puxou, cismou de deixar pra chamar a parteira só no final do capítulo. Entre um estamos apresentando e um voltamos a apresentar, porém, Karina de verdade foi e nasceu, chorando mais do que a da novela, decerto pra mostrar a todos como era braba.
Isso Karina era, era braba sim, agora braba mesmo ela ficou foi naquela noite em que Antônio se esqueceu de fazer de conta que era o personagem e o beijo saiu de verdade, logo no início do ensaio: “Será que não dá pra entender como é um beijo de novela, meu Deus?” E Antônio respondeu: “Dá demais. Um personagem que não sou eu vai usar a minha boca pra beijar um personagem que usa a sua boca, mas não é você. Eu tenho que sentir o personagem aqui dentro, sentir o amor dele, ter vontade por ele, mas na horinha mesmo eu tenho que deixar de ser ele e voltar a ser eu pra poder me lembrar que esse é um beijo de novela e quem está beijando não sou eu, é ele.”
E com essa explicação provou que, entender, tinha entendido, só não achava justo, pois o único beneficiado na história era o tal do personagem.
Mesmo assim, só pra mostrar que tinha decorado seu papel, Antônio ainda tentou outras vezes olhar no meio dos olhos de Karina, sentir um amor que não era seu, dizer eu te amo, Guadalupe, e dar um beijo de novela em Guadalupe pela boca de Karina. Tentou, tentou, mas lhe parecia tão impossível que quase ia confessando:
Que eu te amo eu decorei faz tempo, Karina, que tu é Guadalupe é que não tem jeito de eu decorar.” Só não confessou porque não era com aquelas palavras que havia de dizer coisa tão importante.
Passou então a procurar entre as palavras importantes a mais parecida com aquela coisa lá que ele queria dizer.
Adriana Falcão, in A máquina

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