segunda-feira, 16 de abril de 2018

A graça do amor

Antônio pensava que tinha palavra que servia pra usar no dia a dia e tinha palavra que só servia pra fazer ditado. Sempre ficou intrigado: “Que ideia de jerico se inventar um negócio que só dá trabalho de aprender pra nunca ter o prazer de fazer uso.” Ainda mais palavra difícil de escrever como extravagância, se qualquer extravagância que se fizesse em Nordestina era tida por leseira mesmo.
E haja a procurar palavra importante pra explicar que sua leseira, ou sua extravagância, com acento circunflexo, era querer Karina até onde se pode querer alguém neste mundo de meu Deus, com letra maiúscula, pois, além de nome próprio, Deus é como atende nosso pai e criador.
Com tanta palavra que existia e não havia uma que servisse pra dizer o que Antônio sentia por Karina exatamente. Até que ele tentou inventar algumas, mas não havia som nem letra escrita que dissesse nada parecido.
Assim, sem ter como fazer com que ela soubesse o que ele sentia, o tempo de Antônio ia passando pelos dias de Karina. Dia de segunda tinha filme americano, dia de terça tinha cheiro de feira, dia de quarta tinha o programa que ela mais gostava, depois da novela, e naquela quarta ia passar o último clip dos Condenados.
Os Condenados eram quatro rapazes que cantavam e faziam muito sucesso naquele mês de setembro.
Clip era um filmezinho que você via mas não precisava entender.
O clip dos Condenados devia ser muito bom ou do contrário a plateia não ia gritar tanto. O pedaço em que aparecia uma vaca pastando era da maior importância pra não compreensão daquela aparição, e a freira que voava com uma touca de natação amarela na cabeça também merecia ser observada detalhadamente, uma vez que não servia pra nada a não ser pra isso.
No que findou o clip, Antônio levantou-se da cadeira, disse até amanhã e Karina respondeu, até depois de amanhã que amanhã é quinta. Dia de quinta era dia de Karina visitar a avó e Antônio aproveitava pra botar em dia a palavra saudade.
Em compensação, dia de sexta tinha dança no clube. Houve um tempo em que o salão ficava lotado. No tempo de Antônio, não. Como a cada semana ia-se embora um, os pares foram se desfazendo, deixando cada vez mais ímpares desemparelhados. Depois foi a vez dos ímpares irem ficando também cada vez menos, coitados desses, é impressionante como os números ímpares são muito mais tristes do que os pares. Numa sexta o conjunto ficou sem violeiro, na outra sem sanfoneiro, na outra sem cantor, e, naquela sexta, Antônio teve que se virar em vários pra tocar, cantar e dançar com Karina ao mesmo tempo, ou ia bem deixá-la lá, sentada?
Dia de sábado era quando a luz do sol que entrava pela janela do quarto, refletida no chão, acordava mais perto da porta. Ele achava bonito pensar que o sol tinha nascido depois, porque era sábado, e foi pena que naquele dia ficou provado o contrário.
No que deu seis horas da manhã, e a luz lá, onde ficava de segunda a sexta, Antônio pulou da cama com um pressentimento. Era como se estivesse por nascer uma maneira de convencer Karina daquilo que não tinha nome, não tinha forma, não tinha jeito, não tinha espaço.
Acordado Antônio ficou, “O que é que tu tanto pensa, menino?”, “Besteira, mãe”, até o dia seguinte, que, por ser domingo, era dia de dar volta na praça.

E foi mesmo na frente da igreja que a vida de Antônio deu uma volta medonha, pois, no que viu Karina, seu coração disse pra sua cabeça, vá, e sua cabeça disse pra sua coragem, vou, e sua coragem respondeu, vou nada, mas sua boca não ouviu e beijou Karina bem ali, no meio da praça, e a boca de Karina não disse não, e nem poderia, pois estava por demais ocupada.

Daí pra frente se sucederam muitas noites de festa e muitas outras de desgraça, tanto no coração dele como no dela, e a graça do amor não é justamente esse emperrado? Quer, não quer, pode, não pode, quer mas não pode, pode mas não quer, um passa a querer no que o outro desquer e esse só vai querer novamente com a desquerência do outro.
O fato é que, foi, não foi, Karina e Antônio foram destrocando juras pra lá e pra cá, cada vez mais muitas, e Nordestina acabou se acostumando com aquelas palavras de amor passeando pelas ruas até não sei que horas da madrugada.
Adriana Falcão, in A máquina

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