segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Emprenhar pelos ouvidos

No tímpano da primeira arcada à direita do altar-mor da Igreja da Madre de Deus, no Recife, está um quadro figurando a anunciação à Virgem Maria e ao mesmo tempo a concepção do seu divino Filho. Nossa Senhora ajoelhada ouve o anjo mensageiro do Altíssimo e, das alturas, desce em diagonal um raio luminoso, alcançando a orelha esquerda da Mãe de Deus.
O eflúvio do Espírito Santo impregna a Santa Virgem de sua potência criadora. Emprenhar vem de impraegnare, impregnar.
É uma expressiva materialização, a lo divino, da frase feita popular, empregada na acepção dos que formam opinião e julgamento pelos critérios orais, murmúrios, boatos, rumores, a ouvida vaga da antiga processualística.
Para a antiguidade mitológica, a fecundação podia independer do contato masculino e das vias naturais receptivas. Os inumeráveis casos de gravidez sine concubito motivaram debates judiciários na Idade Média e os tribunais davam ganho de causa às esposas dos cavaleiros cruzados que combatiam na Terra Santa fecundando as mulheres a distância e em sonhos. Mani, a égide da mandioca, foi gerada em sonhos no ventre de sua mãe.
A lição clássica era idêntica. Júpiter concebera Minerva e a trouxera na cabeça. Juno concebera Marte comendo uma flor que crescia em Olene, na Acaia, e Hebe nascera pela demasiada ingestão de alfaces selvagens. Ci tivera Jurupari por ter saboreado abundantes cocuras-do-mato, a porumã, Pourouma cecropiifolia, Aubl. A Cobra-Grande amazônica engravida as cunhãs pela irradiação de sua presença nas águas e não ejaculação do sêmen. No romance de Dona Ausenda, tão popular pelos séculos XV e XVI, cita-se uma açucena que cualquier mujer que la come, luego se siente preñada. É corrente, por essa fecundação via oral, dizer o povo comer, como sinônimo de copular. Certas frutas predispõem à prenhez. “Tempo de caju, tempo de menino.” Sobre o pequi (Caryocar brasiliensis, Camb), o Imperador D. Pedro II, na jornada à Cachoeira de Paulo Afonso em 1859, informou: “O meu guia foi um Fulano de Tal Calaça (Manuel José Gomes), conhecedor deste sertão até Juazeiro, e dos Cariris Novos, onde, segundo me disse, as mulheres emprenham na estação do pequi, excelente fruta, mas um tanto enjoativa, para ele, por causa do oroma, pronúncia dele”.
Dos evangelistas, apenas Lucas (I,35) registra as palavras do anjo: “Descerá sobre ti o Espírito Santo, a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra”.
Durante séculos discutiu-se a forma material da divina concepção.
A tradição oriental mais poderosa indicava o ouvido, por que por ele entravam o conhecimento, a sabedoria, a palavra de Deus. Toda pregação e ensino eram orais e não escritos. Ouvidos e não olhos. O ouvido era o centro do equilíbrio, da estabilidade física. Um distúrbio no ouvido interno impossibilitaria a direção uniforme e a marcha em linha reta.
Essa doutrina prevaleceu sem maiores disputas. Na noite de 23 de dezembro de 428, na Basílica de Constantinopla, o Arcebispo Proclus pregou sobre a maternidade de Maria, afirmando o que era então ortodoxo: “Le Christ est sorti du sein de la Vierge comme il y est entré, par l’ouïe”.
No momento, o Arcebispo Proclus, de Bizâncio, era a lei de Deus para todo o Oriente, e não o Pontífice de Roma, Celestino I.
Essa imagem veio atravessando tempo e credulidade no âmbito popular. Em fevereiro-março de 1534, François Rabelais, que em 1530 se fizera bachelier em Medicina, na Faculdade de Montpellier, faz nascer o seu Gargantua pela orelha esquerda da Senhora Gargamelle. O percurso fora o seguinte: “Par cet inconvénient furent ou dessus relâchés les cotyledons de la matrice, par lesquels sursauta l’enfant, et entra en la veine creuse, où la dite veine se part en deux, prit son chemin à gauche et sortie par l’oreille senestre”. A intenção irreverente não se fundamentava numa evocação de velho conceito outrora verídico, mas naquele princípio do século XVI, o nascimento de Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, não excepcionava dos demais partos, dentro da obstetrícia normal. Escolhendo o nascimento auricular, Rabelais sugeria o exemplo fisiologicamente monstruoso, e localizava a orelha esquerda, justamente aquela onde incide o jorro cintilante do Espírito Santo e que ainda se representa, contemporaneamente, na Igreja da Madre de Deus, no Recife.
O mistério seria a fecundação que, no século V, o Arcebispo Proclus reafirmava ter sido pela orelha, e ainda, vindo ao mundo também por esse conduto. Saíra como entrara, pelo ouvido.
Rabelais não perdeu a oportunidade zombeteira, pelo tempo em que a pilhéria ocorria: “Car je vous dis qu’à Dieu rien n’est impossible, et, s’il voulait, les femmes auraient dorévant ainsi leurs enfants par l’oreille”.
O povo não discutiria o poder de Deus mas já se impusera a uniformidade do parto para todos os viventes, vivíparos e ovíparos.
Quando o Brasil se povoou, essa crendice desaparecera há muitos séculos, mas a frase permanecia nova e própria para os que emprenhavam pelos ouvidos, tendo a voz humana o poder fecundador, porque era hálito, sopro orgânico, criador de Vida, como fizera Jeová na argila manejada pelas suas mãos potentes.
O Prof. Menezes de Oliva estudou mais detidamente esse motivo no seu excelente Você sabia por quê? (Rio de Janeiro, 1962).
Luís da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz

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