No
tímpano da primeira arcada à direita do altar-mor da Igreja da
Madre de Deus, no Recife, está um quadro figurando a anunciação à
Virgem Maria e ao mesmo tempo a concepção do seu divino Filho.
Nossa Senhora ajoelhada ouve o anjo mensageiro do Altíssimo e, das
alturas, desce em diagonal um raio luminoso, alcançando a orelha
esquerda da Mãe de Deus.
O
eflúvio do Espírito Santo impregna a Santa Virgem de sua potência
criadora. Emprenhar vem de impraegnare, impregnar.
É
uma expressiva materialização, a lo divino, da frase feita
popular, empregada na acepção dos que formam opinião e julgamento
pelos critérios orais, murmúrios, boatos, rumores, a ouvida vaga
da antiga processualística.
Para
a antiguidade mitológica, a fecundação podia independer do contato
masculino e das vias naturais receptivas. Os inumeráveis casos de
gravidez sine concubito motivaram debates judiciários na
Idade Média e os tribunais davam ganho de causa às esposas dos
cavaleiros cruzados que combatiam na Terra Santa fecundando as
mulheres a distância e em sonhos. Mani, a égide da mandioca, foi
gerada em sonhos no ventre de sua mãe.
A
lição clássica era idêntica. Júpiter concebera Minerva e a
trouxera na cabeça. Juno concebera Marte comendo uma flor que
crescia em Olene, na Acaia, e Hebe nascera pela demasiada ingestão
de alfaces selvagens. Ci tivera Jurupari por ter saboreado abundantes
cocuras-do-mato, a porumã, Pourouma cecropiifolia, Aubl. A
Cobra-Grande amazônica engravida as cunhãs pela irradiação de sua
presença nas águas e não ejaculação do sêmen. No romance de
Dona Ausenda, tão popular pelos séculos XV e XVI, cita-se uma
açucena que cualquier mujer que la come, luego se siente preñada.
É corrente, por essa fecundação via oral, dizer o povo comer,
como sinônimo de copular. Certas frutas predispõem à prenhez.
“Tempo de caju, tempo de menino.” Sobre o pequi (Caryocar
brasiliensis, Camb), o Imperador D. Pedro II, na jornada à
Cachoeira de Paulo Afonso em 1859, informou: “O meu guia foi um
Fulano de Tal Calaça (Manuel José Gomes), conhecedor deste sertão
até Juazeiro, e dos Cariris Novos, onde, segundo me disse, as
mulheres emprenham na estação do pequi, excelente fruta, mas um
tanto enjoativa, para ele, por causa do oroma, pronúncia
dele”.
Dos
evangelistas, apenas Lucas (I,35) registra as palavras do anjo:
“Descerá sobre ti o Espírito Santo, a virtude do Altíssimo te
cobrirá com a sua sombra”.
Durante
séculos discutiu-se a forma material da divina concepção.
A
tradição oriental mais poderosa indicava o ouvido, por que por ele
entravam o conhecimento, a sabedoria, a palavra de Deus. Toda
pregação e ensino eram orais e não escritos. Ouvidos e não olhos.
O ouvido era o centro do equilíbrio, da estabilidade física. Um
distúrbio no ouvido interno impossibilitaria a direção uniforme e
a marcha em linha reta.
Essa
doutrina prevaleceu sem maiores disputas. Na noite de 23 de dezembro
de 428, na Basílica de Constantinopla, o Arcebispo Proclus pregou
sobre a maternidade de Maria, afirmando o que era então ortodoxo:
“Le Christ est sorti du sein de la Vierge comme il y est entré,
par l’ouïe”.
No
momento, o Arcebispo Proclus, de Bizâncio, era a lei de Deus para
todo o Oriente, e não o Pontífice de Roma, Celestino I.
Essa
imagem veio atravessando tempo e credulidade no âmbito popular. Em
fevereiro-março de 1534, François Rabelais, que em 1530 se fizera
bachelier em Medicina, na Faculdade de Montpellier, faz nascer o seu
Gargantua pela orelha esquerda da Senhora Gargamelle. O percurso fora
o seguinte: “Par cet inconvénient furent ou dessus relâchés
les cotyledons de la matrice, par lesquels sursauta l’enfant, et
entra en la veine creuse, où la dite veine se part en deux, prit son
chemin à gauche et sortie par l’oreille senestre”. A
intenção irreverente não se fundamentava numa evocação de velho
conceito outrora verídico, mas naquele princípio do século XVI, o
nascimento de Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, não
excepcionava dos demais partos, dentro da obstetrícia normal.
Escolhendo o nascimento auricular, Rabelais sugeria o exemplo
fisiologicamente monstruoso, e localizava a orelha esquerda,
justamente aquela onde incide o jorro cintilante do Espírito Santo e
que ainda se representa, contemporaneamente, na Igreja da Madre de
Deus, no Recife.
O
mistério seria a fecundação que, no século V, o Arcebispo Proclus
reafirmava ter sido pela orelha, e ainda, vindo ao mundo também por
esse conduto. Saíra como entrara, pelo ouvido.
Rabelais
não perdeu a oportunidade zombeteira, pelo tempo em que a pilhéria
ocorria: “Car je vous dis qu’à Dieu rien n’est impossible,
et, s’il voulait, les femmes auraient dorévant ainsi leurs enfants
par l’oreille”.
O
povo não discutiria o poder de Deus mas já se impusera a
uniformidade do parto para todos os viventes, vivíparos e ovíparos.
Quando
o Brasil se povoou, essa crendice desaparecera há muitos séculos,
mas a frase permanecia nova e própria para os que emprenhavam
pelos ouvidos, tendo a voz humana o poder fecundador, porque era
hálito, sopro orgânico, criador de Vida, como fizera Jeová na
argila manejada pelas suas mãos potentes.
O
Prof. Menezes de Oliva estudou mais detidamente esse motivo no seu
excelente Você sabia por quê? (Rio de Janeiro, 1962).
Luís
da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz
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