sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Você já leu As verdes colinas da África?

Naquela noite, encontrei Carlo e, para meu espanto, ele contou que tinha estado em Central City com Dean.
O que vocês fizeram lá?
Oh, a gente curtiu os bares, e Dean roubou um carro e a gente despencou serra abaixo, fazendo as curvas a cento e cinquenta quilômetros por hora.
Porra, não vi vocês lá.
A gente não sabia que você estava lá.
Bem, cara, estou indo para San Francisco.
Dean preparou Rita para você esta noite.
Bem, se é assim, abro mão de tudo.
Eu não tinha nem um tostão. Mandei uma carta aérea para minha tia, pedindo cinqüenta dólares e garantindo que aquela seria a última grana que iria pedir, a partir de então, e, tão logo eu pegasse aquele barco, ela começaria a receber dinheiro meu.
Então, fui encontrar-me com Rita Bettencourt e a levei outra vez ao apartamento. Depois de uma longa conversa na escuridão da sala de estar, consegui levá-la para o meu quarto. Era uma garota legal, simples e sincera, só que terrivelmente grilada com sexo. Disse a ela que sexo era bonito. E queria lhe provar isso. Ela me deu chance de provar, mas fui impaciente demais e acabei não provando nada. Ela suspirava no escuro. — O que você espera da vida? — perguntei; eu vivia perguntando isso às garotas.
Não sei — respondeu. — Apenas servir as mesas e esperar que tudo dê certo. — Ela choramingou. Pus minha mão em sua boca e lhe disse que não choramingasse. Tentei explicar a ela meu entusiasmo pela vida e as coisas que poderíamos fazer juntos; dizia isso, mas pensava em deixar Denver dentro de dois dias. Ela se virou, deprimida. Ficamos deitados de costas, olhando para o forro e refletindo sobre o que Deus deveria estar pensando quando fez a vida tão triste assim. Planejamos vagamente um encontro em Frisco.
Meus momentos em Denver estavam chegando ao fim, pude sentir isso quando a acompanhava a pé até sua casa; na volta, estiquei-me na grama em frente a uma velha igreja, junto a uns vagabundos, e a conversa deles me fez desejar voltar à estrada. De vez em quando, um deles se levantava e abordava um transeunte para pedir esmola. Falavam a respeito das colheitas que estavam se deslocando para o norte. O papo era caloroso e gentil. Fiquei com vontade de ver Rita novamente e lhe dizer uma porção de coisas, e realmente fazer amor dessa vez, e tranquilizar seus temores com relação aos homens. Garotas e rapazes da América têm curtido momentos realmente tristes quando estão juntos; a artificialidade os força a se submeterem imediatamente ao sexo, sem os devidos diálogos preliminares. Nada de galanteios — um profundo diálogo de almas, pois a vida é sagrada e cada momento é precioso. Ouvi sons da locomotiva de Denver a Rio Grande ecoar nas montanhas. Quis seguir ainda mais longe atrás de minha estrela.
Major e eu sentamo-nos tristonhos, conversando pela madrugada.
Você já leu As verdes colinas da África? É o melhor de Hemingway. — Desejamos sorte um ao outro. Nós nos encontraríamos em San Francisco. Vi Rawlins sob uma árvore sombria na calçada: — Tchau, Ray. Quando a gente se vê de novo? — Fui procurar Carlo e Dean — não consegui encontrá-los em lugar nenhum. Tim Gray ergueu as mãos para o céu e disse: — Quer dizer que você está caindo fora, Yo? — A gente se chamava de Yo. — Pois é — eu disse. Vadiei por Denver durante os dias que se seguiram. Para mim, era como se cada vagabundo da Larimer Street fosse o pai de Dean Moriarty, o velho Dean Moriarty, o Funileiro. Fui ao Windsor Hotel, onde pai e filho tinham morado e onde, certa noite, Dean fora terrivelmente despertado por um aleijado sem pernas, que usava um carrinho com rodas, que dividia o quarto com eles. Ele veio deslizando sobre o chão, em cima de suas rodas horrorosas, para tentar tocar o garoto. Vi a anã que vendia jornal na esquina da Curtis com a 15ª. Perambulei pelos cabarés deprimentes da Curtis Street; garotos em jeans e camisas vermelhas; cascas de amendoim, marquises de cinema, estandes de tiro ao alvo. Além das cintilâncias da rua via-se a escuridão, e para além da escuridão, o oeste. Eu tinha de ir.
Ao amanhecer, encontrei Carlo. Li partes de seu vasto diário, dormi lá, e na manhã cinzenta e chuvosa, o alto Ed Dunkel, quase dois metros, apareceu com Roy Johnson, um garoto bonitão, e Tom Snark, o craque manco do bilhar. Eles se sentaram por ali e, com sorrisos desconcertados, escutaram Carlo Marx ler sua louca poesia apocalíptica. Eu me afundei na cadeira, arrasado. — Oh, sim, os pássaros de Denver — bradou Carlo. Saímos em fila e fomos até um daqueles típicos becos sem saída de Denver, entre incineradores que fumegavam lentamente. — Eu costumava brincar de rolar argola bem aqui neste beco — dissera-me Chad. Eu queria tê-lo visto fazer isso; queria ter conhecido Denver dez anos antes, quando todos eles eram crianças, numa ensolarada manhã primaveril com as cerejeiras das Rochosas em flor, rolando suas argolas em becos ruidosos e promissores — a turma inteira. E Dean, sujo e esfarrapado, vagando solitário num transe absorto.
Roy Johnson e eu caminhamos na garoa; fui à casa da namorada de Eddie recuperar minha camisa de flanela xadrez, aquela de Shelton, Nebraska. Ela estava lá, cheia de nós, toda a imensa tristeza de uma camisa. Roy Johnson disse que iria me encontrar em Frisco. Todos estavam indo para Frisco. Descobri que meu dinheiro tinha chegado. O sol apareceu, e Tim Gray pegou um tróleibus comigo até a rodoviária. Comprei uma passagem para San Fran, gastando metade da grana, e embarquei às duas da tarde. Tim Gray me acenava enquanto o ônibus rodava, deixando para trás as lendárias e animadas ruas de Denver. — Meu Deus, terei de voltar um dia para ver o que vai acontecer! — prometi. Num telefonema de último instante, Dean me disse que ele e Carlo talvez se juntassem a mim na costa; pensei a respeito e concluí que, durante a passagem por Denver, não tinha conversado com Dean mais que cinco minutos.
Jack Kerouac, in On the road – Pé na estrada

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