Variações Goldberg (1ª edição)
Durante
alguns meses, participei de um círculo de leitura de Fernando
Pessoa. Éramos um grupo pequeno – uma bailarina, um físico, um
filósofo, um psicanalista e eu. Havia um sexto participante: um
médico, que chamarei apenas de doutor T.
Comovia-me
o esforço do doutor T. para encontrar verdades e respostas nos
poemas de Pessoa. Para seu horror, as lições que arrancava a
fórceps dos versos eram logo destruídas pelos próprios versos. T.
não suportava o mal-estar e as variações que a leitura de Fernando
Pessoa nos impõe.
Um
dia, abatido, anunciou sua saída do grupo. “Esse homem não sabe o
que diz”, justificou. Seus olhos estavam embotados de decepção.
Estampavam um segundo sentimento, mais doloroso: a vergonha, como se
o tivéssemos flagrado em um devaneio infantil. Ela tornava seu olhar
não só murcho, mas áspero.
Hoje
encontro uma expressão melhor para descrevê-lo: os olhos do doutor
T estavam secos. Soube, tempos depois, que passou a desaconselhar a
seus pacientes, como potencialmente perigosas, a leitura de ficções.
A uma pessoa do grupo que o encontrou, por acaso, em um shopping, ele
disse: “Agora, sim, longe dos escritores, eu sei onde piso”.
Devo
a expressão a Bernardo Ajzenberg e a seu mais recente romance, Olhos
secos
(Rocco). Uma incômoda narrativa sobre o duplo poder da imaginação.
Sim: também a imaginação está regida por oscilações e
variações. Grandes escritores, como Pessoa, a usam para ampliar o
horizonte humano. Muitos de nós, porém, dela fazemos um uso bem
menos sábio: usamos a fantasia para nos cegar.
Não
sei se Leon Zaguer, o protagonista de Ajzenberg, chega a ser um
fracassado, como ele imagina. A vida do Leon adulto, atolado na
mornidão do casamento e em uma profissão que despreza, tem, em
princípio, a aparência de um desmentido (de uma aniquilação) das
aventuras do jovem Leon pela Europa e por Israel. Delas só restam
anotações em um diário.
O
romance de Bernardo Ajzenberg contrapõe esses dois Leons. Também
eu, enquanto leio Olhos
secos,
me desdobro. Continuo a ser quem inevitavelmente sou; mas me torno
também, um pouco, Leon Zaguer. Com a força de um explosivo, a
literatura escava veios imaginários no peito do leitor. Não para
consolá-lo, pois não pretende solucionar nada. Mas para
energizá-lo. Os grandes livros expõem as variações (sismos,
cisões, desencontros) que, alternando em nosso interior, fazem de
nós homens, e não feras.
Na
música, o termo “variações” fala da apresentação de uma
mesma melodia ou harmonia com modificações estruturais que as
tornam aparentemente novas. Nas variações musicais, o Mesmo “é”
o Outro, o que ilustra nossa condição bipartida, na qual, quanto
mais desdobramos a fantasia (em vez de nela nos mirar placidamente,
como crentes), mais nos aproximamos de nós mesmos.
Penso
na mais célebre das variações musicais, as Variações
Goldberg,
magnífica obra para cravo composta por Bach. Um vizinho que estuda
música me conta que ela é o resultado de uma encomenda do conde
Kayserling, destinada ao cravista Johann Goldberg. O conde sofria de
uma insônia grave; Bach compôs suas variações na esperança de
adormecê-lo. Até hoje, as Variações
Goldberg
– consagradas nas interpretações do pianista canadense Glenn
Gould – nos sacodem e despertam. O paradoxo é suficiente para
ilustrar a autonomia da arte.
Também
Ajzenberg é autor de um belo romance que trata da instabilidade do
coração, Variações
Goldman,
de 1998 – a história de um homem atordoado pelas repetições do
amor. Nas variações, a linha (o corpo) se mantém. Mudam as
energias, o tônus, o espírito que nela (nele) circulam. Em Olhos
secos,
um mesmo personagem, Leon Zaguer, se divide não para fugir, mas, ao
contrário, para se encontrar.
Leon
Zaguer é o Goldberg de Ajzenberg. Em seu interior, os humores se
alternam e a existência se move. As duas vidas de Zaguer não se
chocam, embora ele pense que sim. O homem maduro, como um vampiro que
suga o sangue do próprio pescoço, se alimenta do jovem; mas é a
fantasia da maturidade que mantém o jovem de pé.
O
leitor de ficção está absolutamente desinteressado das lições de
vida que o dogmático doutor T tanto preza. A literatura não ensina
nada. Ao contrário, nos defronta – como Leon Zaguer – com duas
metades que jamais se encaixam. Esse homem “ficcional” –
Zaguer, que muitos talvez tomem como uma falsificação – é muito
mais verdadeiro do que o homem que se pensa verdadeiro.
Seu
casamento é puro tédio. A um amigo, ele confessa que uma de suas
raras diversões é “encaixar os ovos no compartimento da geladeira
quando volto do supermercado”. Talvez esses sejam alguns dos poucos
momentos em que a ilusão do encaixe e da estabilidade se concretiza.
Jovem,
viajando por Atenas, Zaguer pensa em uma ideia de Bertold Brecht
segundo a qual não é triste o país que não tem heróis, mas
aquele que precisa de heróis. Maduro, deprimido com a rotina no
cartório, sofre do mal prenunciado por Brecht: agarra-se ao jovem
que foi e supõe que só na juventude chegamos à felicidade.
Fica-lhe uma frase do pai: “Talvez o monstro não seja tão
monstruoso assim, talvez você, sem saber, seja até mais monstruoso
do que ele”.
Quando
admiramos alguém, uma imagem atordoante e luminosa sempre nos cega,
lhe adverte o amigo Moti Ajzen, um dentista infeliz que carrega em
seu sobrenome metade do sobrenome de Ajzenberg. A idealização nos
deixa com os olhos secos, “petrificados, sem luz, nem água”.
Retidos na dura borra dos ideais, afundamos na tristeza. Bem melhor
(e mais bela) é a incoerência do real.
Lembro
que, durante nossas reuniões para a leitura de Pessoa, o doutor T.
se dizia deprimido porque seus ideais de juventude se esfarelaram e a
vida o traíra. Sem fantasias que o protegessem (como alguém nu em
um baile de Carnaval), o mundo lhe parecia fétido como um esgoto.
Daí sua opção pela medicina, a arte da higiene e da cura.
Não
podia entender o doutor T. que, ali onde a fantasia se desmancha, a
vida começa. Desmascarada a solução imaginária, tudo o que temos,
ainda, é a imaginação. Só que agora, em fez de nos afastar do
mundo, ela nos joga em seu coração.
José
Castello,
in Sábados
inquietos
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